– E não seria ridículo, como disse no princípio, que um homem que se preparou toda a vida, vivendo num estado o mais próximo possível da morte, se revoltasse quando esta venha ao seu encontro?
– Seria mesmo ridículo!
(Platão – Fédon)
A Teatro Nacional 21 levou a cena uma nova produção, desta vez dando forma em palco a um texto de Cláudia Lucas Chéu.
Num tempo em que os meios de comunicação social e as redes sociais nos inundam de notícias, de imagens, de testemunhos e de tomadas de posição sobre as mais variadas formas de violência e as suas vítimas, numa sucessão de títulos cada um mais horrendo que o anterior, Veneno oferece o palco a um monstro, descrevendo de uma forma nua e crua o percurso de um homem que sofre de toda a ignorância, abraça todos os preconceitos e mostra-se capaz de todas as violências perante a diversidade.
Se no início do espectáculo ainda nos é dado um relance do pouco que de humano resta à personagem, e somos até galardoados com uma performance drag que anima o ambiente, este clima de festa e diversão tem, porém, os minutos contados, pois cedo o furacão é libertado, e somos confrontados com uma realidade atroz.
Tal como um comboio em chamas, a dita personagem, este pai enquanto construção social como homem que trabalha para os filhos e se sente legitimado a maltratar tudo e todos, é colocado à nossa frente, com toda a brutalidade e sem rodeios, durante uma hora e trinta minutos.
O espaço da performance é um sofá onde a figura dita masculina está sentada o tempo todo, bebe vinho, vê televisão e ouve rádio. Atrás de si, um retrato de família onde todos os elementos têm como denominador comum a cara do patriarca. O vinho deixa no ar um aroma adocicado que rapidamente se torna em sangue e dor.
A escritora e os criadores não quiseram usar qualquer forma de apagamento, moderação ou atenuação do discurso. As palavras ficam ali suspensas, ficam escritas e inscritas no corpo daquele homem como prova da estupidez que domina ainda o nosso tempo. Homofobia, racismo e misoginia são apenas algumas das pinceladas usadas pela escritora para mostrar este monstro que, ao longo da peça, vai aterrorizando uma família inteira, que é a sua.
Tal como é dito em cena: “Há pessoas que são veneno. Tóxicas até à medula”. E este monstro em palco é disso exemplo, tóxico e ditador para com os que o rodeiam até ao momento da sua morte, alcandorada a apoteose de uma masculinidade supostamente tão forte e que se mostra, afinal, tão frágil e tão fraca como um copo de cristal. Partido em mil estilhaços, assim termina a vida deste homicida passional, depois de destilar, em palco e para o público, o seu Veneno.
Veneno, de Cláudia Lucas Chéu
Texto Cláudia Lucas Chéu
Apoio à dramaturgia Mickaël de Oliveira
Direção e interpretação Albano Jerónimo
Participação especial Leonor Devlin e Luís Puto
Música Allen Halloween
Espaço cénico Albano Jerónimo e Rui Monteiro
Desenho de luz Rui Monteiro
Direção de produção Francisco Leone
Produção executiva Luís Puto