Quem? Quando? Onde? Como? Porquê? As cinco perguntas a que uma notícia tem que responder.
Assim ditam as regras do jornalismo velha guarda? Ou do jornalismo sério e credível que se exige?
‘Última hora’ é um espetáculo de Rui Cardoso Martins, encenado por Gonçalo Amorim e que estava previsto ficar em cena, no teatro D. Maria II, até 15 de Novembro. Do elenco desta comédia fazem parte atores bem conhecidos do grande público como Miguel Guilherme, Maria Rueff e João Grosso.
A redação de um jornal de ‘ciência económica’ enfrenta tempos difíceis, as vendas desceram e o novo acionista interpretado, de forma tão credível pelo ator José Neves, ao ponto de nos fazer sentir urticária da personagem, é o transmissor de um processo de reestruturação. O momento ‘downsizing’, em que a personagem comunica aos filhos – os figurantes invisíveis que finge estarem sentados em duas cadeiras enquanto o pai faz um exercício de cinismo em tempo real – a dificuldade de despedir marca o início do fim da credibilidade conquistada pelo jornal ao longo de anos. Tudo acontece perante uma equipa editorial inteira atónita depois de convocada para uma reunião com um desconhecido (que parece saído de uma Ted talk motivacional) investido de plenos poderes. Completamente desligado do jornalismo a sua aposta é fazer disparar os likes na versão online do jornal. Isso do papel tem os dias contados. E como? Os métodos a utilizar não incluem rigor. O ‘cocktail molotov’ de disparates inclui uma dose tanto generosa quanto saloia de anglicismos ditadas pelo benchmarking, uma série de clichés que mais parecem tirados de manuais de auto ajuda ou de lições de marketing para tótós e uma boa dose de sensacionalismo. No seu discurso ‘fast food’ há espaço para ‘fake news‘, ou notícias apimentadas, para sugestões de colunas ‘inovadoras’ sobre hambúrgueres gourmet e cozinheiros magros e uma manipulação generosa dos seus trabalhadores. Os trabalhadores promovidos a ‘colaboradores’ perdem direito a salário, a opinião e, idealmente, passam de despedidos a voluntariamente desertores do jornal. É difícil não encontrar um paralelo com outros jornais que o capitalismo foi enterrando. O exemplo mais próximo é o Diário de Notícias… O acionista corrupto repete à exaustão que ‘tudo é economia’ para justificar a total degenerescência da identidade do jornal. Não se poupa a humilhar uma das jornalistas mais experientes (Lúcia Maria) pelo seu artigo sobre questões de geopolítica arredadas da maioria dos leitores. Escolher os trabalhadores a despedir gera uma inquietação quer entre os mais velhos e experientes, quer entre os mais novos, os estagiários de marmita ao colo. O confronto entre o jornalismo do passado, o da reportagem de proximidade e o jornalismo de hoje, à distância de um drone que recolhe a imagem a salvo de perigos e envolvimentos, está sempre lá . É curioso como a estagiária (Ema Marli), de telecomando na mão, que não faz ideia que foi na segunda guerra mundial que o fotógrafo Robert Capa tirou fotos memoráveis, afronta o repórter de guerra, interpretado por um João Grosso sempre em forma. O repórter transporta o seu colete com buracos de balas e repete com entusiasmo desbragado a sua experiência alucinante em cenário de guerra. Menos que uma cobertura da Guerra do Iraque seria como fazer artigos de culinária. Não contem com ele. A estagiária mais talentosa é, claro, também desvalorizada pelo acionista. O licenciado em Direito (Pedro Moldão) está mais preocupado com a paternidade do que em exorcizar o seu desencanto com a advocacia e fica à mercê da colega mal intencionada que o põe na linha da frente para o despedimento. E há até um jornalista infiltrado (Cláudio Castro) a dar informações ao inimigo corrido a pé. O marketeer todo poderoso não perde oportunidade para um assédio sexual à estagiária oportunista (Nadezhda Bocharov) que se encarrega de dinamitar os colegas de trabalho para poder assegurar o posto de trabalho e aumentar a chance de concretizar a sua aspiração de ir para a televisão para acompanhar os famosos. Diz ela que ‘adora sentido de humor’. A chefe de redação, uma mulher investida de um discurso revolucionário a puxar aos tempos do PREC, interpretada com o talento habitual de Maria Rueff, não abdica da sua investida à jovem sedutora de calções de pele. A paixão fátua e ilusória da chefe, não fosse a falta de caráter e o vazio intelectual os nomes do meio do alvo da sua cegueira amorosa valem, também, alguns bons momentos de humor. À estagiária talentosa (Catarina Couto Sousa), que assina com as iniciais, o diretor (encarnado pelo grande Miguel Guilherme) pergunta se é um Rottweiler ou um perdigueiro numa metáfora sagaz sobre o estilo jornalístico. É a estagiária promessa a única a acompanhar as citações compulsivas de um jornalista experiente (Manuel Coelho) que engoliu literatura para usar frases em momentos oportunos. É nela que se abre a janela de oportunidade e o texto de Rui Cardoso Martins deixa espaço para que os pessimistas e os mais nostálgicos do passado percebam que talvez não seja inevitável que, no futuro, esteja a mediocridade do imediato, a falta de ética e o desrespeito pela História. O novo jornalismo tem esses novos talentos que fazem da escrita e da investigação vocação.
No meio das intrigas lançadas pelo novo acionista e a sua aliada estagiária, as deliciosas paragens dos colegas no bar mais próximo. Ali se partilham vinho e croquetes e histórias, muitas histórias. Ao som de ‘You can’t always get what you want’, dos Rolling Stones há memórias, partilhas, laços que se mantêm e inimigos que se recordam. O rival do grupo Salpicão (é isso mesmo… Salpicão) lança a fúria em editoriais contra o diretor do jornal, que afunda o seu alcoolismo em cafés e sais específicos trazidos por uma fiel administrativa (Paula Mora). É precisamente o momento em que o diretor liberta o seu vernáculo, num telefonema pejado de cólera jornalística e de ignomínia do jargão insultuoso, que propicia um dos momentos mais hilariantes do espetáculo. O mesmo diretor que se gaba de ser bom a fazer obituários é o retrato da memória. Talvez não seja de abrir o livro deste espetáculo que a pandemia pode interromper, mas que o público desejará que volte. A sala do D. Maria riu e aplaudiu.
E não esperem só comédia. Na verdade a descrição da história real do poeta Ernesto Sampaio, feita pela filha do diretor (Inês Cóias) ,que morre um ano depois da mulher Fernanda Alves – a quem dedica o livro Fernanda cujos excertos são lidos durante a peça – em resultado de um processo de degradação provocado por um perda que lhe causa profunda tristeza, é um momento intimista que nos diz que este espetáculo não abdica da riqueza dos afetos. É verdade que essas transições dramáticas são, talvez, o terreno mais sinuoso do espetáculo ‘but you can’t always get what you want’.
Aquele pregão de ardina que se ouve ao fundo “Últimaaaaa horaaa” é um sinal desse segredo indecifrável do jornalismo, a vertigem da novidade, do imprevisto, o que faz o jornal ‘vender como pãezinhos quentes’.
Este espetáculo guarda tanto de saudade como de vontade de salvar o jornalismo das garras do capitalismo.
“Últimaaaaa horaaaa”. Às 21h. No D. Maria II.
Foto de Filipe Ferreira