“Terror e miséria”, de Bertolt Brecht, é a proposta do Teatro do Bairro, em cena até dia 14 de abril. A peça foi escrita durante o exílio do dramaturgo na Dinamarca, entre 1935 e 1938, e retrata a ascensão do regime nazi na Alemanha. Em abono do rigor a companhia socorreu-se da consultoria da historiadora Irene Flunser Pimentel, doutorada em História Institucional e Política Contemporânea e autora de diversos estudos sobre a Segunda Guerra Mundial.
De qualquer modo, resgatar esse passado de ascensão do nazismo é também um acerto de contas para as reflexões do presente. A compreensão do passado é uma ferramenta imprescindível para pensarmos o momento presente, sobretudo por não podermos ser alheios à repetição de contextos históricos e aos seus efeitos, por vezes devastadores. Por isso, não é à toa que a companhia propôs a Daniel Oliveira um comentário sobre o texto de Brecht, na sequência de assistir a alguns ensaios da peça. Uma opinião que nos permite fazer a ponte entre um contexto social e económico que cria condições para a tomada do poder, por via democrática, de um líder como Adolf Hitler e realidade atual da Polónia, da Hungria, da Itália, dos Estados Unidos ou do Brasil ou, como também refere, a de “Um refugiado que morre no Mediterrâneo, os ciganos que são alvo dos ataques de um candidato demagogo, um negro no bairro da Jamaica”. No texto intitulado: “As notícias que chegam de lá”, menciona o romance de Sinclair Lewis, escrito na mesma época que a peça “Terror e Miséria no Terceiro Reich”, em que se fala daqueles que profetizam, com toda a incúria e ingenuidade, que “isso não pode acontecer aqui”. Claro que pode. E assim tem sido.
São 15 quadros do fascismo. O primeiro faz-nos o enquadramento, pela voz do narrador (Mário Sousa), uma figura exuberante, vestida de branco, qual palhaço profeta, vestido de morte e de futuro, que nos diz que Hitler chegou ao poder no dia 30 de janeiro de 1933 recuperando o orgulho nacionalista manchado pela 1.ª Guerra, de 1914-1918 e garantindo a estabilidade política almejada. Depois, passaremos por espaços tão diversos como o campo de concentração de Oranienburg ou uma entrevista numa fábrica feita a operários – instruídos para glorificar as novas conquistas e a alegria na labuta – por um locutor (Francisco Vistas), enlevado pelo seu orgulhoso papel de semeador da propaganda e da cultura hipnótica engendrada por Goebbels, Ministro da Propaganda e da Informação Pública.
No palco a projeção de imagens a preto e branco trazem verosimilhança e são esteticamente bem conseguidas e a presença do pianista Nicholas McNair só contribui para um maior envolvimento com o público.
A ironia e o humor são uns dos principais trunfos de um espetáculo bem urdido pelo encenador António Pires. É por isso que este espetáculo que nunca deixa de nos desafiar, interpelar, de nos fazer rir, para nosso embaraço, do medo que tolhe os burocratas e rir, ainda, do absoluto deslumbramento, tantas vezes boçal, de muitos daqueles que implementam um regime sórdido nas suas práticas. A cena em que o agente da SA, por João Baeta, (SA é a tropa de assalto, polícia paramilitar de Hitler, que espalhava o terror como se de um exercício infantil se tratasse) exibe as suas botas novas à namorada, criada de uma família burguesa, é de um ridículo desconcertante. O ridículo exponencia-se quando o agente se entrega ao faz de conta de um operário (deliciosamente interpretado pelo ator João Barbosa que sabe exatamente como levar o público à gargalhada). O operário, ardilosamente, aproveita a sugestão do agente de fazerem uma espécie de simulação da abordagem dos SA a marxistas e outros descontentes com o regime. Uma cena que espelha, cinicamente, essa “banalidade do mal”, usando a expressão da filósofa Hannah Arendt.
Cenas como a do juiz, magistralmente interpretado por Adriano Luz, refém da sua obediência ao Führer, encalacrado na sentença por proferir e no pânico de acabar no campo de concentração se fizer justiça no caso concreto, condenando os SS, fazem as delícias do espectador.
Inesquecível, também, a cena do professor (novamente o Adriano Luz) e da mulher, interpretada por Inês Castel Branco, aterrorizados com a mera possibilidade da denúncia, pelo próprio filho, de uma conversa trivial sobre as notícias do jornal. O filho que pode, afinal, ser um delator e, naqueles dez minutos intermináveis em que sai à rua num dia chuvoso de Domingo, pode reportar conversas incriminadoras dos pais. É vê-los tentar repetir o seu próprio discurso, espiando cada palavra, temendo que cada uma delas seja errada e vá parar aos ouvidos da juventude hitleriana.
Até a judia burguesa, que nunca quis saber de política, como repete no seu pensamento verbalizado em voz alta, a preparar a mala, em fuga, com medo até da vergonha do marido. Pergunta-se sobre o que terá mudado para agora voltarem a cara ao marido, cirurgião, só por ser casado com ela: uma mulher não loira e de ascendência judaica, que infâmia. Afinal, como diz, o caráter acaba sempre por ceder perante o medo e o marido oscila entre achar um disparate a partida e a conformação, frouxa, com uma opção sensata que durará pouco tempo. Percebemos o engano destrutivo daquela despedida quando acede a ir buscar o casaco de peles da mulher antecipando dias frios e longínquos e cedendo, pelo medo, à sua condição burguesa e acomodada.
E não é por acaso que o espetáculo termina de forma provocatória. Quando dois operários e uma mulher ouvem, pela telefonia, os ecos festivos da vitoriosa unificação com a Áustria perguntam-se se estão sozinhos. É sempre essa a dúvida que assola as fases mais turbulentas, em que a escolha entre resistir e desistir parece tão difícil. A escolha é dura quando a força parece estar do lado oposto e a alternativa parece lunática. Assim, contra todas as probabilidades, a mulher insiste que é preciso continuar a fazer circular propaganda contra o regime. É curioso que seja uma mulher, de forma forte e corajosa, a encerrar o espetáculo, e que quando questionada sobre as palavras de ordem, responde que se podem resumir a uma única, brava e simples: “Não”.
E que grande espetáculo de resistência este que o Teatro do Bairro nos trouxe. Um espetáculo que, inteligentemente, nunca desiste do riso como arma, fundamental, da provocação.
Terror e Miséria
Texto: Bertolt Brecht
Tradução: Fiama Hasse Pais Brandão
Encenação: António Pires
Interpretação: Adriano Luz Inês Castel-Branco João Barbosa Mário Sousa Rafael Fonseca Francisco Vistas João Maria Sandra Santos Carolina Serrão Jaime Baeta
Cenografia: Alexandre Oliveira
Figurinos: Luís Mesquita
Luz: Rui Seabra
Assistente de Iluminação: Cláudio Marto
Música: Nicholas Mcnair
Desenho de Som: Paulo Abelho
Assistente de Som: Guilherme Alves
Construção de Cenários: Fábio Paulo
Mestra Costureira: Rosário Balbi
Costureiras: Luísa de Sousa Conceição Peixoto Fátima Figueiredo
Ilustração: Joana Villaverde
Produção Executiva: Marta Moreira Ivan Coletti
Administração de Produção: Ana Bordalo
Comunicação: Maria João Moura
Produtor: Alexandre Oliveira