Por cada um dos muitos ecrãs que temos em casa entram, diariamente, dezenas de notícias. Hoje em dia a informação está tão disseminada que, muitas vezes, nem conseguimos decidir o que é que queremos ver, saber ou simplesmente o que é de facto uma notícia ou não. É este o mundo onde estamos a criar os líderes do amanhã: um mundo em que é mais importante saber os detalhes sórdidos de um crime do que ensinar as pessoas a pensar. Parece que o veículo que foi imaginado para fazer chegar a verdade, o sonho e a imaginação a mais gente anda demasiado entretido a passar a mentira, o desespero e as barreiras ao conhecimento.

Até que entramos no São Luiz! Motivo: Assistir à peça Sr. Ninguém, a peça sobre o Homem sem memória à procura de histórias.

Tento fazer estas minhas incursões sem ler muita coisa para ir de espírito aberto, com a imaginação mais do que disponível para aceitar o que quer que me apareça à frente. Neste caso, é-nos dado à entrada um “jornal” cujo objetivo é levar-nos para dentro da história. Baseado no livro “As Rosas de Atacama” de Luís Sepúlveda somos apresentados a 6 histórias, histórias essas que vão ser votadas pelas crianças, escolhidas. Diz o Sr. Ninguém que não vamos ouvir as 6 histórias – temos de aprender a escolher, a decidir, a tomar consciência do que queremos. Histórias decididas pelo nome, pela forma como a história é apresentada. As crianças saltam, lançam nomes código: “Fernando”, “Guarda” e vamos escolhendo o noticiário a que queremos assistir. E somos levados pela mão do repórter Ninguém – deliciosamente interpretado por Gustavo Vicente – que fala num tom doce, decidido mas igualmente pertinente. O Gustavo, durante uma hora consegue prender a atenção daquelas crianças sem qualquer recurso às “armas da tecnologia”; consegue passar a mensagem (e muitas vezes a mensagem vai escondida também para os pais e adultos que lá estão). Somos igualmente expostos ao poder da sugestão: as histórias são descritas no pequeno jornal de uma forma simples que não deixa de ser uma perspetiva: quando contadas, algumas foram por caminhos que eu não estava à espera. Parece inclusivamente esta uma das muitas mensagens da peça: Meninos, abram os olhos! Olhem que nem tudo o que parece, é!”

Antes de sair somos ainda brindados por uma história pessoal (do Gustavo me parece, o Sr. Ninguém naquele bocadinho descansou) – uma das muitas histórias de incêndios dos últimos anos. Uma história de coragem, de determinação, de perigo, de medo. Uma história de um neto de um avô Carteiro e de uma avó que trabalhou numa mina de Volfrâmio (como o meu avô). Saio da sala com o coração e o espírito ainda mais aberto – mais uma vez me é provado que não existem temas tabus para as crianças – elas são mini-adultos sem filtros preparadas para um mundo que será aquilo que construirmos com elas. E o que queremos que vá escrito nesse futuro jornal?

Sr. Ninguém
de Gustavo Vicente
22-28 outubro 2018
São Luiz Teatro Municipal

DIREÇÃO E DRAMATURGIA Gustavo Vicente
CRIAÇÃO Ainhoa Vidal, Gustavo Vicente e Inês Rosado
CENOGRAFIA Carla Martinez
DESENHO DE LUZ E VÍDEO João Cachulo
MÚSICA AO VIVO Sérgio Nascimento
INTERPRETAÇÃO Gustavo Vicente, Carla Martinez e Sérgio Nascimento
COPRODUÇÃO Teatro Municipal do Porto e São Luiz Teatro Municipal

Fotografia: Estelle Valente

Categorias: Teatro

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