Silly Season é uma expressão que enquadra um determinado espírito veraneano dos media, que se caracteriza por uma certa leviandade na produção de notícias cujo conteúdo é de importância irrisória ou irrelevante, por via da ausência de assuntos verdadeiramente importantes. A mesma expressão designa também aquela altura do ano (o verão) em que as pessoas estão de certo modo descomprometidas da seriedade do quotidiano do trabalho, permitindo-se dizer disparates e coisas sem sentido. O que importa é a forma, não tanto o conteúdo.
SillySeason é o nome de baptismo do grupo de actores Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva e Ricardo Teixeira, que desde 2012 se tem revelado prolífico nas suas produções artísticas de carácter teatral, performativo e transdisciplinar. A identidade do grupo, desde o seu início, alterou-se, mas o seu discurso artístico sempre foi fiel a si próprio, e ao nome que escolheram para designar o colectivo. Os trabalhos dos SillySeason são quase sempre provocativos, irónicos e sarcásticos. Preferem o tom blasé para discursar sobre assuntos verdadeiramente importantes, mas sem nunca deixar que a importância ou desinteresse do assunto se imponha sobre aquilo que realmente lhes importa: uma certa prática que se associa a um certo modo de fazer, uma dedicação à forma e à estética que se pratica, visualmente sempre mais imponente e mais forte do que os assuntos sobre os quais se propõem discursar.
Fora de Campo é o último espectáculo deste grupo, apresentado no Teatro Taborda, numa carreira de espectáculos que durou 4 dias. Nesta produção, o núcleo de actores SillySeason conta com a participação de Ana Moreira, Érica Rodrigues, Sérgio de Brito e Vítor Silva Costa. A proposta artística é um regresso dos SillySeason ao clássico A Casa de Bonecas de Henrik Ibsen, depois de terem desenvolvido DOOLS, um trabalho para o ecrã apresentado na RTP (Janeiro 2020).
Fora de Campo discursa sobre a ascensão e libertação da condição da mulher, sobre a concretização de sonhos, a evidenciação dos problemas de subjugação, a necessidade do cumprimento de regras, do rigor…. um discurso que, partindo de um clássico, é distorcido para passar a ser outra narrativa, que se instaura para o espectador como um discurso metateatral num sentido muito pouco óbvio: Fora de Campo é uma parábola do papel das artes e dos actores, das suas conquistas, das suas incertezas, das máfias – que também as há – do nosso contexto profissional dos artistas, cujo clímax deriva numa corrida sem fim que demonstra a condição do actor, sempre em esforço, a caminho do reconhecimento, do protagonismo no ecrã (grande ou pequeno, isso não interessa), um actor que representa toda uma classe, perseverante, sobrevivente, lutador, que não desiste, nem com “os bofes de fora”, porque acredita, convictamente, que vale a pena.
Fora de Campo é um exercício de forma. Por via da experimentação e do questionamento (motores queridos ao grupo) ensaia simultaneamente a utilização de dois tipos de linguagens de interpretação dos actores – para a câmara e no palco – e coloca o espectador num exercício de digladiação entre aquilo a que assiste em cena, no teatro, e aquilo que ao mesmo tempo segue no ecrã, que está estrategicamente colocado à boca de cena, acima dos olhos. Este ecrã transmite a peça, em directo, à medida que cameramen seguem cuidadosamente o elenco, na progressão da narrativa. Esta técnica, a de filmar e transmitir em directo a cena de teatro que se passa em palco, transformando a linguagem dramática em linguagem cinematográfica, e os dispositivos e técnicas para isto utilizados lembram a estética de Christiane Jatahy na encenação do seu espectáculo Júlia: Fora de Campo faz uso de décors em vez dos convencionais cenários teatrais, e as performances dos actores trabalham devidamente ambas as intrepretações praticadas – o enquadramento da câmara e a acção em palco, num compromisso que cuida, de facto, tanto o que surge dentro de campo como o que fora dele acontece. A invasão da equipa técnica poderia distrair ou atrapalhar, mas em vez disso é quase invisível e passa entre cenas, na captação dos actores, sem que o espectador dê demasiado por isso.
Como é habitual no discurso artístico praticado pelos SillySeason, o conteúdo (o texto, no caso, a peça A Casa de Bonecas de Henrik Ibsen) não tem tanta importância assim, pois sobre ele sobrepõem-se questões mais importantes para o grupo, tanto do ponto de vista do que é dito como, sobretudo, do ponto de vista da forma, do que é feito, da estética da imagem e da acção, cuja leitura é muito mais rica do que a dramaturgia das palavras. E esta é, paradoxalmente, a sua maior virtude e a sua maior fragilidade, tanto no grupo como na produção deste espectáculo: a estética dos SillySeason apropria-se dos clássicos de um modo superficial e, num exercício de distanciamento, ilustra-os com uma linguagem performativa que vive de cor, de corpos, de movimentos, de acções e encenações fortes, cujo conteúdo acaba sendo silly, fazendo jús ao nome. O que importa é a forma, não tanto o conteúdo. E o que é estranho de perceber é que o seu desprendimento textual, em vez de anular o significado dos dramas, expande-os dando-lhes novas roupagens e interpretações tão diferentes e insuspeitas que tal modo de fazer os clássicos acaba por ser reconhecidamente eficaz. Disto são exemplos também outros trabalhos do colectivo, como Antígona (2015) a partir da obra de Sófocles, ou Prado de Fundo (2016) – a partir d’O Cerejal de Anton Tchékhov, entre outros.
Para os SillySeason, os clássicos são inspiração, mas não existe uma real pretensão em encená-los – o objectivo é desconstruí-los para os reverter na sua própria linguagem. Sobretudo no que diz respeito ao trabalho de actor, os seus espectáculos em geral, e Fora de Campo, em particular, transparecem um grande cuidado nas possibilidades de revelação das interpretações, dos truques e virtuosismos que são próprios de cada intérprete. Fora de Campo é sobretudo sobre isto mesmo: a utilização do ecrã permite ao espectador perceber os preciosismos, o rigor e as subtilezas do olhar de cada actor, dá lugar de privilégio à matéria humana do acontecimento e, por isto, assumir o enquadramento televisivo apenas como mera manipulação é redutor. O enquadramento que o médium do ecrã de Fora de Campo oferece à plateia compreende antes uma assinatura, um ponto de vista, uma interpretação e uma visão, aqui determinada pela direcção de João Leitão. É verdade que o que se mostra é muito menos do que tudo o que rodeia a cena. Contudo, e este exercício cénico é prova disso – só por meio da imagem enquadrada, recortada, aumentada ao pormenor o público se dá conta de tensões, tenuidades e olhares que escapam à linguagem teatral. Se a realidade é reduzida, a capacidade dramática dos actores é aumentada, acresce-lhes qualidades que escapam ao olho nu, no palco. O que se passa no ecrã, há que conceder, é mais mágico do que o que se passa na cena de Fora de Campo, sobretudo na contracena de Érica Rodrigues e Ana Moreira. A violência entre Ricardo Teixeira, Vítor Silva Costa e Sérgio de Brito é muito mais agressiva quando filmada, e as cenas de jardim entre Ivo Silva e Cátia Tomé experimentam na televisão uma aura beckettiana, apesar de ser na cena de palco que se recolhe o seu maior simbolismo, quando nele vemos estes os actores (ou as personagens?) a enterrar, literalmente, os seus problemas.
Todos os gestos, acções, palavras ganham em filme (entenda-se, série) uma dimensão que não se alcança em palco. E não se trata de qualidade –do melhor ou pior – mas de qualidades que são inerentes aos próprios meios e linguagens que estão a ser experimentados. Aliás, o espectáculo convoca a atenção para essa comparação, ao concretizar, em simultâneo, a efemeridade do teatro e a permanência da imagem gravada, mediada difundida e transformada em constelação de estrelas de televisão.
Não sendo apenas um espectáculo que discursa sobre formas, sobre o modo como se compõe o conceito de série de televisão versus espectáculo dramático, é também um espectáculo que demonstra o que tem sido o trabalho dos SillySeason desde a sua origem até ao momento de estar Fora de Campo: revela as alterações de identidade do grupo, transmite referências de outros grupos artísticos que desde sempre apoiam e inspiram os SillySeason, experimentam novas relações, apresentam grandes evoluções (sobretudo no que diz respeito ao cruzamento de disciplinas, variando entre a interpretação “perto da letra” dos autores clássicos para as metáforas contemporâneas sobre a actualidade)… Fora de Campo apresenta-se como o espectáculo mais maduro de SillySeason, que vive de parcerias e de “infiltrações” saudáveis, testemunho de novas cumplicidades e da prática de uma generosidade imensa em explorar o drama pessoal de cada interveniente deste espectáculo: “Não serei eu um drama? Não serás tu um drama?”*.
*Fora de Campo, SillySeason
Criação e Direcção: Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva, Ricardo Teixeira. Interpretação: Ana Moreira, Cátia Tomé, Érica Rodrigues, Ivo Saraiva e Silva, Ricardo Teixeira, Sérgio de Brito, Vítor Silva Costa. Participação Especial: Duplo. Direcção de Vídeo: João Cristóvão Leitão. Operação de Vídeo: João Lobo, Marta Ribeiro. Investigação e Documentação: Telma João Santos. Cenografia: SillySeason. Execução Cenográfica: José Galamba – Décor Galamba. Figurinos e Adereços: SillySeason, Inês Ariana. Música: Ricardo Remédio. Apoio ao Movimento: Rodrigo Teixeira. Cabelos: Tomás Vohlgemuth. Desenho de Luz: Manuel Abrantes. Fotografia: Alípio Padilha. Design Gráfico: Joana Carneiro. Produção: Mariana Nunes. Assessoria de Imprensa: Élia Teixeira. Coprodução: SillySeason/ RTP. Apoios: Associação ILGA Portugal, APAV, Câmara Municipal de Lisboa, Espaço do Tempo, Junta de Freguesia de Astromil, Teatro Cão Solteiro, Teatro do Elétrico, Teatro Praga.
(Este texto está também publicado em www.ocalcanhardeaquiles.wordpress.com )