O realizador Michael Haneke é um dos mais brilhantes a dissecar a condição humana. Nos argumentos do cineasta natural de Munique e formado em Viena, penetra-se, sem subterfúgios, nos medos e angústias que se podem manifestar nos atos mais violentos. O filme, do mesmo realizador, ‘A pianista’ a personagem interpretada pela magistral, mas sempre cerebral Isabelle Huppert, é expressão do impacto dilacerante da solidão combinada com opressão.
Em “O Laço Branco” aproxima-se das “raízes do mal” perseguidas por Hannah Arendt. As personagens são sempre exploradas na sua singularidade e múltiplas contradições. Os crimes estranhos que assolam aquela localidade vão-se sucedendo e a vingança, a crueldade e a maldade parecem dominar o quotidiano como se fossem uma inevitabilidade a que não é possível colocar freio.
O filme, passado no momento que precede a Primeira Guerra Mundial, numa aldeia alemã dominada pelo conservadorismo extremo da igreja protestante, pode ser visto como uma espécie de crónica antecipada do nazismo e há críticos que apontam nesse sentido. A miséria dos camponeses contrastante com a tirania do feitor – que encara os seus trabalhadores como meros vassalos credores da sua gratidão- é um dos retratos mais conseguidos do filme que não se demite de uma crítica social seca e dolorosa. Camponeses esses que podiam bem ser os das “As vinhas da Ira”, de Steinbeck, retratados por John Ford. A revolta expressa no filme pelo filho de camponeses – que perde a mãe num acidente de trabalho- destruindo a produção que o feitor se recusa a pagar, é fortemente reprimida pelo pai. Ao ficar desempregado como retaliação pelo ato do filho vê-se incapaz de sustentar a família e o desespero acaba por culminar com suicídio. Um pai impotente para ajudar os seus cuja vida de desgraça não encontra lugar para esperança nem futuro. Haneke nunca desiste de nos confrontar com a dureza da realidade e os atos ignóbeis partem de razões sórdidas. A compreensão dos atos das personagens parece, a todo o momento, exigir-nos tolerância e perdão e obrigar-nos a não fazer julgamentos sumários, a encontrar explicações. Neste filme a preto e branco a tolerância parece estar maioritariamente ausente. Naquele lugar inóspito a luz abandonou os aldeãos. Ainda assim, e não sendo Haneke contaminado pelo facilitismo de personagens-tipo, há espaços de luz na treva. A figura do narrador da história, o professor, que não só procura descobrir os autores dos crimes, como se apaixona por uma rapariga muito mais nova com quem virá a casar depois de enfrentar o estigma que paira sobre eles, encarna uma nova oportunidade para encarar a realidade pela lente do afeto. Também algumas personagens femininas parecem guardar espaço para a empatia e funcionam como freio à cólera masculina. Numa sociedade patriarcal que relega a mulher para um lugar subalterno em que a punição é agressão, em que o castigo (incontornável) nunca é sequer proporcional, em que o amor parece não ter lugar por ser encarado com uma fraqueza os dias são de escuridão. Há mulheres que são representadas como vítimas desse sistema opressor, mas também como sinal, ainda que distante, de esperança.
Como expressão da exponencial violência sobre as mulheres recordo uma das cenas mais marcantes do filme, em que o médico e uma personagem central da trama – um homem execrável que abusa sexualmente da sua filha menor – se dirige à companheira dizendo que é flácida, velha, tem mau hálito e que só tolerou estar com ela aqueles anos para não se dar ao trabalho de recorrer regularmente a prostitutas e que pensa em outra mulher quando estão juntos intimamente. O asco, a crueldade extrema com que trata aquela mulher que parece morta de impotência e humilhação, a quem o médico termina dizendo que deseja que morra e vá embora, é desconcertante. Mas Haneke vai mais longe… Nesse diálogo percebemos que esse homem, o médico respeitado por todos na aldeia, era casado com Julie antes desta nova companheira. Esta mulher, totalmente fragilizada, depois de se rebaixar quase suplicante às incúrias que ouviu e numa resposta frouxa aos maus tratos acusa-o de não ser capaz de amar e de maltratar todas as mulheres incluindo Julie e fala do seu filho com deficiência. E percebemos que talvez faltem peças nesta história. No final, quando esta parece ter fugido da aldeia e o médico desaparece os aldeãos desdobram-se em teses sobre o assunto: culpam-nos dos crimes, concluem que talvez tenham planeado juntos matar Julie, desconfiam que aquela criança com deficiência era filha de ambos e pode ter sido resultado de um aborto malsucedido. Das várias teses não se podem retirar conclusões: encerram uma valoração sem contraditório e parecem expiar culpas, procuram a estabilidade de uma certeza inventada, sobretudo sabendo que outro entendimento tornaria todos cúmplices da maldade de não serem capazes de ver aquela criança torturada como seu par ou, pior, que talvez a ausência de uma pretensa verdade mentirosa inventada à medida da ignorância traria o desconforto de pensar que os crimes poderiam continuar. Mas isto são dúvidas de espectador. Haneke serve-se delas como ninguém.
Importa também realçar o lugar que ocupam as crianças neste filme. Aos filhos, que devem representar a pureza e inocência, o pastor coloca um laço branco no braço sempre que prevaricam, mas só depois de castigados com chibatadas. O lenço é o sinal de que não se devem afastar do caminho do bem. São também estas crianças – educadas no temor reverencial ao pai e pastor, a quem este inculca o medo, que amarra à cama, a quem descreve os castigos divinos da forma mais grotesca e assustadora, como se Deus fosse um punidor capaz dos mais hediondos atos, exercendo sobre elas um terror psicológico indescritível – que se tornam potenciais criminosas. Aprender a linguagem do medo e do terror é amanhã reproduzir o clima de medo e terror. Essa mensagem é inequívoca neste filme que nos defronta com a ausência de limites à crueldade humana sempre que é semeada. E é assim que a criança com deficiência, vítima do desprezo total das outras crianças, é sujeita uma tortura hedionda que nos remete para o eugenismo que o regime hitleriano reproduziu de modo tão cruel. E, sim, podem ser estas mesmas crianças aqueles jovens que enfileiraram, sem hesitação, na juventude hitleriana, servindo a pátria e a raça ariana ou pura de Heidegger.
A desigualdade social, a opressão política e religiosa e o medo como sementes do totalitarismo.
Haneke não desiste dos temas fraturantes que são também aqueles que nos convocam para reflexões primordiais. ‘Caché’ e a proteção da privacidade, ‘Amour’ e o suicídio assistido, ali encarado como ato de amor e ‘O laço branco’ a disputar o espaço do debate das sementes do totalitarismo são apenas alguns exemplos da deriva de Haneke. Temas de uma atualidade incontestável. Mas Haneke nunca se basta com descrições superficiais de realidade, com abordagens panfletárias e tão pouco com retratos estáticos. Ousa colocar o dedo na ferida, ir à raiz, chamar os nossos sentimentos de reação à injustiça, convoca-nos para pensar, compreender e é por isso repleto de potencial transformador. Poucos cineastas se poderão arrogar disso.
“O laço branco” ganhou a palma de Ouro de Cannes e o reconhecimento da crítica internacional, mas não sendo um filme recente o propósito de o recuperar vem da sua atualidade. Mudemos os protagonistas e chamemos Trump ou Bolsonaro e assistiremos, em tempo real, a crimes contra a humanidade e a um mundo quase permissivo, quase cúmplice, perante a ignomínia.
Curiosamente Haneke replica a simbologia dos pássaros (usados em ‘Amour’), pássaros encarados como sinais de opressão ou de esperança. Depois de uma das filhas matar o pássaro do pai pastor e punidor como se o usasse para lhe infligir a dor que lhes provoca, o filho mais pequeno resolve oferecer um novo pássaro ao pai para que não fique triste com a perda do primeiro. E aquele recomeço é ou poderia ser a possibilidade de fazer diferente…
No dia 10 de Dezembro comemoram-se os 72 anos da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos e tanto tempo depois, em bom rigor, continuamos na disputa não do seu aprofundamento, como seria de esperar, mas do seu cumprimento; continuamos na luta para desmascarar as múltiplas formas de violações dos direitos humanos que se vão alastrando como uma praga que seca a democracia. Importa nunca esquecer a premissa fundamental do “direito a ter direitos”[1].
No filme de Haneke as personagens debatem-se com uma profunda e angustiante solidão. Uma solidão que emerge mesmo no coletivo. E que poucas personagens conseguem romper. E nessa travessia contra a solidão é preciso desfazer inevitabilidades, encontrar alternativas, mas construí-las exige-nos a todos um exercício contra o egoísmo e matar o silêncio exige uma combinação entre ação e tolerância sem claudicar que se faz de ruturas e de pontes tão difíceis quanto necessárias.
“O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a esfera da vida pública, isto é, sem destruir através da esfera de isolamento dos homens, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperantes experiências que o homem pode ter”.
[1] Arendt, Hannah (1967), As origens do totalitarismo.