Às 21.46, no Armazém 22, é impossível aborrecermo-nos. O Guardião do Rio está lá, até 26 de Novembro, para guardar também a nossa atenção, durante 70 minutos de teatro enternecedor.

O Rio é apresentado como uma entidade feroz e decidida, importante para a sobrevivência da Aldeia de Cima e da Aldeia de Baixo, mas também capaz de as destruir com a força do seu curso. O Guardião, como o nome indica, tem a função de garantir que o nível da água do Rio não ultrapassa uma determinada marca, o que poderia pôr em risco as populações.

Como o Rio não dorme, o Guardião também não. A sua profissão consiste em passar 24 horas, diariamente, focado nas variações da água, numa imensa solidão. Sem distrações. É que o assunto é muito sério: caso o nível do Rio suba abruptamente, o Guardião terá de escolher se salva a aldeia de cima ou a aldeia de baixo de uma cheia potencialmente destrutiva.

Com um humor ao jeito da Palmilha Dentada (sim, aquele humor que faz rir e chorar por mais) este texto e encenação entusiasmantes de Ricardo Alves, resultam num espetáculo de tremenda generosidade. Um exercício de ator sublime, que leva Ivo Bastos a dividir-se entre múltiplas personagens.

As marionetas, que ajudam a combater a solidão (do ator? do Guardião?) são manipuladas de uma forma impressionante. Parece impossível que seja um só homem, um só corpo, uma só voz a dar vida a tantas vidas. Mas é possível e está logo ali, perante os nossos olhos, no espaço acolhedor e intimista do Armazém 22. É de notar que a tarefa de Ivo Bastos fica facilitada, dada a grande qualidade plástica das marionetas, concebidas por Sandra Neves.

Ao longo do espetáculo, além de um envolvente espaço acústico, pensado por Rodrigo Santos, vamos ouvindo uma voz na nossa cabeça, que pergunta “ Mas o que é que eles querem dizer com isto, afinal?”; Vamo-nos embrenhando na tarefa de encontrar significados em tudo, essa obsessão tão comum ao ser humano. Quais as metáforas que podem estar por trás de um rio?

Quando, finalmente, aceitamos que não há segundos sentidos escondidos por trás das palavras de Ivo, somos arrebatados com um final surpreendente… Em menos de um minuto o desfecho deste espetáculo deixa-nos sem chão.

Afinal, quantos de nós combatem diariamente a solidão? Quantos fixam o seu olhar num rio inexistente e deixam o resto do mundo passar? Quantos ficcionam a sua vida para combater a realidade? Quantos se debatem com dilemas que talvez não tenham assim tanta importância? E quantos desejavam ter, de facto dilemas, importantes, cujo desfecho pudesse mudar o mundo?

Quantos de nós se aborrecem, às vezes? Mas às 21.46 no Armazém 22, é impossível aborrecermo-nos.

Mais informações

Até 26 de Novembro
Armazém 22
Vila Nova de Gaia

Texto e encenação Ricardo Alves
Interpretação Ivo Bastos
Direcção plástica Sandra Neves com Joana Caetano
Sonoplastia e música original Rodrigo Santos
Categorias: Teatro

3 Comments

O Guardião do Rio, de Palmilha Dentada

  1. É pena este texto revelar tudo sobre a peça, um verdadeiro spoiler. Ainda bem que só li depois de ver a peça.

  2. Se esta iniciativa pretende ser uma reflexão sobre espectáculos, é importante que nos revele o conteúdo. Estava com dúvidas se ia ou não ver esta peça ; ainda bem que li esta reflexão porque agora quero mesmo ir vê-la!

  3. Ao escrever-se sobre um espectáculo, tem de se falar sobre o seu conteúdo sem se ser tendencioso nem revelar demasiado, como é aqui o caso, e leva o leitor a decidir-se se deve ou não ir ver o espectáculo. É muito boa ideia haver este sítio para sabermos o que se vai fazendo no mundo do espectáculo.

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