“Sob a lua num velho trapiche abandonado as crianças dormem.”
Capitães da Areia, Jorge Amado”Margem”, em cena no TECA, no Porto, é um texto de Joana Craveiro. Um espetáculo que traz “não” atores a palco. Vêm falar da sua história. São adolescentes da Casa Pia e do Terço. Os novos capitães, vindos da margem, aparecem com o propósito claro de cruzar obra e vida, surgem para nos falarem dos seus “trapiches”, da sua casa, onde estão juntos, para o melhor e para o pior. Vivem à margem de um sistema que os expulsou, que nos integrou, a tal margem onde Pedro Bala, Sem Pernas, o Professor e Dora se encontravam e descobriam a combinação explosiva de liberdade com marginalidade . Joana Craveiro já nos habituou a trabalhos de revisitação da memória, feitos através do testemunho dos anónimos, dos “heróis” esquecidos e não desiste dessa intenção de transformação do espectador pelas histórias partilhadas. Fá-lo com a segurança de quem pisa terra firme tendo um pântano de recordações debaixo dos pés. Assume um risco que poucos enfrentam. Desta vez, partindo da obra Capitães de areia, do escritor Jorge Amado, a proposta é mais uma viagem por retratos individuais que se cruzam e se unem num coletivo de dança e partilha, onde a palavra é só mais um movimento de capoeira, esboroada no balanço de um passo de dança.

Regressar ao “Capitães da areia” é como voltar a um lugar de descoberta, de transformação e reflexão social e, claro, voltar à Baía mesmo sem nunca lá ter estado . Tal como Joana Craveiro era adolescente quando o li. Marcou-me como poucos livros. Jorge Amado tinha apenas 17 anos quando nos legou a história daqueles meninos de rua. Ali guardada temos algo precioso, uma verdade à prova de qualquer escrutínio, límpida, sem julgamentos morais, onde a crítica social é só o cruzamento entre essa verdade e a poesia de cada frase daquela narrativa escorreita que nos engole. O espetáculo não desmerece a obra, pelo contrário, trá-la para o presente, atualiza-a, contextualiza-a, retira-lhe, ou melhor, empresta-lhe novos protagonistas. E talvez seja difícil encontrar atores tão genuínos como aqueles, que combinam o seu arsenal de tempo, com a obra que leram e nos lêem, a obra que vão, ora tendo em mãos, ora deitando em colchões espalhados pelo chão. Um turbilhão em palco desenrola-se à nossa frente, um turbilhão de esperança nessa revolução de gente com gente dentro, gente que nos fala de memórias, de amor, de família, da casa, sim, da vida, pois.

Ao Alexandre Tavares, ao André Cabral, ao David S. Costa, ao Hugo Fidalgo, ao João Nunes Monteiro , ao José Santos , ao Magnum Soares, ao Marco Olival, ao Marco Tavares, à Nara Gonçalves , ao Tiago Ferreira , ao Vicente Campos e ao Vicente de Freitas Melo, um sincero obrigada.

“[…] perguntei-lhes sobre casas, sobre quartos, sobre o amor, sobre a família, perguntei-lhes sobre memórias tristes, sobre memórias boas, sobre o que acontece quando a luz se apaga e aqueles pensamentos todos lhes vêm à cabeça. Houve silêncio e lágrimas. ”
Joana Craveiro, Margem

“A voz do negro no mar canta o Samba de Boa Vida:
Companheiros vamos pra luta…”

Categorias: Dança Teatro

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