É com a lenta revelação de um fotograma de uma das versões de La Sortie de l’usine Lumière à Lyon que se inicia Lumière! L’aventure commence (2016). Só depois de um breve apontamento histórico acerca da invenção do cinematógrafo e de o ecrã mergulhar de novo no negro é que essa imagem será animada e devolvida ao filme a que pertence. Testemunhamos, de repente, o milagre do movimento no interior do que anteriormente era estático; e Thierry Frémaux, através do processo, recria num espectador moderno o fascínio provocado pelas primeiras imagens do cinema, inaugurando a viagem pelo arquivo que se seguirá. São, ao todo, 108 cópias restauradas em 4K de filmes dos irmãos Lumière rodados entre 1895 e 1905, que Frémaux organiza em capítulos temáticos e vai comentando em voice-over.

Se a oportunidade de ver parte da obra dos Lumière em condições tão notáveis constitui a principal justificação e virtude do projecto de Frémaux, as observações que vai tecendo são um complemento importante para que o filme cumpra a função pedagógica que deixa clara desde o início. Frémaux, que tem organizado ao longo dos últimos anos inúmeras projecções comentadas dos filmes que aqui se reúnem, pretende dirigir-se a espectadores com diferentes graus de cultura cinematográfica, e consegue acertar no tom exacto do discurso necessário a essa exigência. Neste equilíbrio, recusa, por um lado, um tipo de exposição excessivamente técnico e hermético que excluiria um público não-especialista; e, por outro, evita certas simplificações e lugares-comuns que se têm vindo a acumular sobre o papel dos Lumière.

Ao invés de acentuar as sempre discutidas características documentais daqueles filmes, Frémaux coloca a ênfase sobre a ficção e encenação que as imagens dos Lumière já transportam em si. Interessa-lhe perceber, enquanto elas se vão sucedendo no ecrã, em que medida é que a presença da câmara altera já a cena que é captada; como é que ela afecta o comportamento de quem é filmado; e de que modo reorganiza e transforma o mundo para o dar a ver de novo a um espectador. Do seu ponto de vista, os Lumière não podem apenas ser descritos como artífices, mas como artistas – e num dos momentos mais audaciosos do filme, sugere mesmo que, com eles, “tudo é mise-en-scène”. Não são meras tiradas hiperbólicas de um admirador inebriado pelas imagens que apresenta (e Frémaux é-o indubitavelmente), mas afirmações apoiadas numa análise luminosa de aspectos específicos da linguagem inventada pelos Lumière e que fazem do filme um excelente exemplo prático de crítica cinematográfica.

Mais do que revisitar o princípio da História do Cinema, o percurso sugerido em Lumière! L’aventure commence permite sobretudo contextualizar e identificar a verdadeira autoridade dos Lumière sobre a posteridade. Frémaux não tem a arrogância de se aproximar dos filmes que exibe como se aqueles fossem apenas uma curiosidade histórica, nem os trata como um episódio isolado de que o cinema vindouro não viesse a conservar qualquer traço. Pelo contrário, mostra como certas particularidades das composições dos Lumière sobrevivem e são actualizadas em planos, enquadramentos, ideias e movimentos de câmara no cinema dos melhores realizadores. Refere, entre muitos outros, John Ford, Luchino Visconti e Yasujirō Ozu; e embora essa influência não seja nenhuma novidade, é reconfortante verificar a subsistência de uma preocupação genuína com a importância da memória do cinema que se opõe à ideia de um passado como matéria morta que já nada tem a dizer. Rever os Lumière, hoje, se não fosse já a tempo de salvar o mundo, teria pelo menos como consequência a existência de melhores filmes.

Lumière! L’aventure commence é um trabalho espantoso, e Frémaux dá a ver, como se estivéssemos de novo naquela primeira sessão no Grand Café de Paris, o ímpeto dos cineastas primordiais em filmar a realidade e fazer sentido do que os rodeava. Não foi só o início de uma arte, mas de uma boa nova que os Lumière fizeram questão de espalhar por toda a parte enviando operadores para os países mais díspares (e o capítulo de Frémaux que dá conta desses filmes é, aliás, o mais interessante). Ao contrário do que certa vez terão dito a Georges Méliès, o cinematógrafo era afinal uma invenção com futuro; e como o filme deixa explícito, não é somente o começo da aventura que temos a agradecer aos Lumière.

Lumière! L’aventure commence, de Thierry Frémaux (2016)
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