A noite de sexta-feira na Galeria Zé dos Bois era de estreias e o cardápio prometia. Os bilhetes estavam esgotados há tempo: afinal, era o primeiro concerto da MC brasileira Linn da Quebrada em Portugal, integrado na sua também primeira (mini) digressão europeia, e a primeira apresentação ao vivo de Conan Osiris, autor de Adoro Bolos, o disco que surgiu sem aviso no final do ano passado e que tem vindo a deixar muita gente rendida, curiosa ou intrigada (mas ninguém indiferente). A juntar a isto, Mykki Blanco e Jagër completavam a noite com um DJ set.
Coube precisamente aos dois últimos a tarefa de aquecer o “aquário” da ZDB. Durante quase uma hora, o hip hop e o funk do rapper americano e do DJ português conseguiram pôr a sala, já cheia, a começar a dançar.
Eram quase 23 horas quando Conan Osiris entrou em palco – não trazia bolos, mas sim caramelos, que distribuiu pelo público antes de enfrentar o microfone. E o que se ouviu primeiro foi a voz: o instrumental demorava a arrancar e Conan lançou-se aos primeiros versos de Borrego à capela, em demonstração acidental da força da sua voz. “Achavam que eu não sabia, não era?”, atirou ao público.
Pela ZDB passaram todos os retalhos que fazem a manta de influências que é Adoro Bolos: bollywood, fado, Médio Oriente, funaná, techno de carrinhos de choque. Foi uma hora em que pudemos ouvir o álbum quase na íntegra — “vamos fazer isto rápido, para conseguir cantar mais”, dizia Conan, nas breves pausas que fazia entre músicas — tendo apenas ficado de fora Obrigado, a última faixa do disco. Houve ainda tempo para temas antigos: Coruja e 1Ovni (de Música, Normal, o disco anterior) e, a encerrar, Amália, a sua primeira música cantada e que lhe fez sentir que “talvez houvesse uma hipótese de não ter vergonha” da sua voz.
Ninguém diria que Conan “só” estava a abrir a noite e que se seguiria um cabeça-de-cartaz. Ninguém diria que este era o seu primeiro concerto: tirando uns atropelos em alguns versos – “tenho de escrever letras mais simples para não me enganar” – o que se viu em palco foi segurança e à-vontade. E os bolos lá acabaram por chegar, oferecidos por alguém no público quando começou a música que dá nome ao disco.
Pouco depois da meia-noite, Linn da Quebrada entrava, de forma dramática, em palco: bouquet de flores nos braços, passos lentos e óculos escuros, ao lado de Jup do Bairro, que a acompanharia nas vozes ao longo do resto da noite.
Talento é a primeira música que se ouve: “não adianta pedir que eu não vou te chupar escondida no banheiro”. Linn é, mais do que cantora, uma activista – trans, queer, feminista – e a música é a sua arma. Os seus alvos são a transfobia (veja-se este verso, em que ataca homens que têm sexo com mulheres trans às escondidas) a misogenia, o racismo – e luta por um espaço para os corpos trans e não-binários, especialmente negros e das periferias (“a minha pele preta, é meu manto de coragem”, cantou em Bixa Preta, música pedida em uníssono pelo público já em encore).
Quase todas as canções-manifesto de Pajubá, primeiro álbum e o mote desta digressão, foram cantadas. Mensagens fortes servidas num baile funk que pôs toda a sala a dançar e transpirar.
Terminado o concerto, Pininga, o DJ de Linn da Quebrada, continuou no seu posto a servir funk brasileiro aos resistentes que não sucumbiram ao cansaço e, durante uns minutos, vimos todos os artistas voltarem ao palco, agora só para dançar. Uma noite em que todos os corpos tiveram espaço e foram livres.