“Eu sou muito bem comportadinho e escrevi um livro assim. (risos)”
Esta entrevista não é uma entrevista, também o é, mas além disso, é uma conversa entre um escritor e uma aspirante a escritora, que encontrou no “O escuro que te ilumina”, uma identificação a nível pessoal e literário. Há respostas que são para mim, porque é a mim que essas questões assolam. Porque sou eu que o “Leio como se ele me escrevesse”.
Muito se escreveu já sobre “O escuro que te ilumina” de José Riço Direitinho e a palavra “pornografia” vem quase sempre como adjectivo primordial, ideia que o escritor desconstrói a cada oportunidade. No fim de contas, esta é uma bela história de um amor e da forma como a personagem principal, um professor de Literatura, encara a vida que lhe foi traçada com a consciência das suas próprias limitações.
José Riço Direitinho, o escritor desconhecido por tantos leitores que ganhou notoriedade com a publicação de “O escuro que te ilumina”, um romance que aborda um amor solitário sob o ponto de vista do desejo carnal, com uma linguagem sexualmente explícita e uma carga religiosa fora do comum neste tipo de histórias. Posso resumir assim?
Sim. Eu já tive mais projecção do que tenho hoje. Tive 12 anos sem publicar, mas quando comecei a publicar em 92, e de seguida em 94 e 98, esses romances e esses livros de contos tiveram uma recepção bastante aceitável em Portugal e não só, os livros estão todos traduzidos numa série de línguas. Depois passei por 12 anos sem querer publicar e, de repente, apareceu este livro. Foi um livro que se foi construindo a ele próprio, eu não sabia bem o que é que ia fazer, sabia que era um diário, que queria contar algumas coisas e que fosse uma coisa sem censuras, então deixei-me ir. Com a personagem masculina era fácil eu identificar-me, já a personagem feminina fui deixando para o fim. até que um dia se fez um clique qualquer de como é que aquela história ia acabar e depois acabou por ser reconstruir o passado deles. Eu impus-me um prazo para terminar o livro, caso contrário ele seria muito mais trabalhado, muito mais longo, teria ainda muitas coisas para aquelas personagens.
5 meses, não foi?
Sim, à volta disso.
Partindo deste ponto de vista, e falo pela minha própria experiência enquanto leitora que apenas conhece o José Riço Direitinho como escritor “pornográfico” (como te apelidaram), como é que lidas com a disparidade entre essa conotação e toda a tua obra e trabalho que fizeste até aqui?
Os outros livros, para mim, são uma coisa que estava, eu ia dizer arrumada mas não é o caso. Aqueles livros são uma unidade de um certo período da minha vida. São também uma unidade em termos literários. Eu com este não tinha nada a perder, já não publicava há 12 anos, estava-me a borrifar, foi uma tentativa de me abanar também, de ver até onde é que era capaz de ir e ao mesmo tempo de abanar um bocadinho as pessoas e a literatura portuguesa dos últimos anos. Eu sabia que o livro que eu publicasse iria ter, por parte da crítica e de algum público, um olhar curioso e foi uma oportunidade de fazer uma coisa que não existe na literatura portuguesa, pelo menos nesta escala. Obviamente que há romances que têm uma série de cenas pornográficas, mas não um romance quase todo. Para mim, isto não é um romance pornográfico, isto é uma história de amor, mas de facto o que sai do romance, o que fica é a questão da linguagem, mas porque as pessoas não estão muito habituadas a que a literatura portuguesa fale assim e daí talvez a história de ser uma coisa pornográfica, que para mim não é.
Achas que o facto de haver uma correria a este livro tem a ver com isso, com o facto de não haver esse tipo de literatura? Mal comparado, achas que as pessoas estariam à espera das 50 Sombras de Grey portuguesas?
Não, não creio. Eu não publicava há 12 anos, ainda havia muita gente que se lembrava de mim. Depois há o facto de eu escrever no Público todas as semanas. Seria normal que, quando eu publicasse um livro, fosse um livro de contos, fosse um romance normal ou fosse este, que houvesse uma atenção, quer do público, quer da crítica. Talvez que parte de algum “sucesso” tenha depois que ver com isso, para quem não me conhecia. Agora para quem conhecia livros anteriores, acho que não
Na entrevista ao Sol referes que o livro é melhor recebido por mulheres do que por homens. Porque razão achas que as mulheres se sentem mais próximas desta tua escrita?
Depois de muito pensar e de muitas dúvidas e de algum espanto, acho que encontrei a razão. Este livro vai preencher um espaço de fantasia nas mulheres, porque as mulheres têm muito mais espaço para a fantasia do que têm os homens. Em relação aos homens, este livro confronta-os com alguma ideia de masculinidade e, para alguns, eu acho que esse confronto é desagradável.
Uma vez disseram-me: “Só é possível ver, ler e sentir se nos desembaraçarmos da maioria dos preconceitos” Achas que as mulheres têm mais facilidade nesse exercício do que os homens?
Em termos de fantasia acho que sim. Se culturalmente, as mulheres foram sempre, e são, muito mais reprimidas em termos sexuais, obviamente que encontram o escape na fantasia, na imaginação. No caso dos homens, que não são tão reprimidos, não deixam esse espaço à fantasia. E daí talvez as mulheres terem menos preconceitos, porque o são a um nível apenas mental.
Afirmas ainda que “a nova literatura portuguesa é muito bem comportadinha,” que “eles são todos muito certinhos.” Achas que a forma como se escreve sobre sexo, seja no masculino ou no feminino, reflecte a forma como cada um vive a sua própria sexualidade? Ou mais como gostaria de a viver?
A ficção é sempre autoficção. O autor está sempre presente nas personagens todas de uma maneira ou de outra, tenha vivido ou não tenha vivido. O que é verdade é que saíram todas da mesma cabeça e se é aquela cabeça que as produz, aquilo não pode andar muito longe, pode concordar ou não com algumas atitudes e com alguns pensamentos, mas são filhas. O que não quer dizer que um livro “mal comportado” tenha um autor mal comportado. Eu sou muito bem comportadinho e escrevi um livro assim (risos). Mas se calhar o mau comportamento também passa pela cabeça dos bem comportados e é isso depois que se escreve. Eu lembro-me que quando escrevi o primeiro romance, “O Breviário das Más Inclinações”, escrevi-o com uma personagem que eu queria que fosse má, porque eu me achava muito bonzinho, no fundo aquilo era apenas um contraponto, uma compensação. No entanto, aquele personagem sou eu, mas na altura não fazia, nem pouco mais ou menos, aquelas “maldades” que ele vai fazendo. Mas sim, reflecte sempre o autor.
No teu livro, levantas a questão da ideia machista de que as mulheres têm de erotizar o ir para a cama, porque, além de lhes aliviar a culpa, é politicamente mais correcto aceitar que uma mulher “faça amor”, do que “foda”. Mas, ao mesmo tempo, mais à frente, afirmas que as mulheres, por causa desse mesmo sentimento de culpa, fantasiam mais sobre sexo com desconhecidos, o estar “com o outro que não existe”. Mas não são estas ideias contraditórias? Não nos ensina esta sociedade “politicamente correcta”, o contrário?
Não. Uma coisa é a fantasia que as mulheres têm, mais do que os homens, de foder com desconhecidos, que é uma fantasia, não quer dizer que o façam. Na primeira parte, eu referia-me à vida real, as mulheres, quando vão para a cama com desconhecidos, com pessoas que acabaram de conhecer ou que conhecem há pouco tempo, têm muito a tentação, pelo menos nas conversas, de não dizer só: “Eu vou para a cama porque o gajo é bom.”, dizem “Eu vou para a cama porque o gajo é inteligente ou porque ele é interessante, ou porque não sei o quê.” O que é, é um contraponto à ideia machista, é uma reacção ao facto de que as mulheres não podem expressar desejo físico. Então tiveram de inventar essa coisa de: levam a pila e levam o cérebro. No caso dos homens, eles não precisam de dizer isso.
Na maioria dos encontros que descreves, há sempre, por parte das mulheres, um lado de submissão muito forte. Achas que essa submissão, do ponto de vista sexual, retira de alguma forma poder ao feminismo?
Não, de maneira nenhuma. Há feministas, muito feministas, que na cama são muito submissas. Não tem nada a ver.
Concordas que as pessoas que têm mais responsabilidades, que têm funções de maior poder sobre outros, são as mais propensas a essa submissão? Como forma quebrarem regras que eles próprios têm de impor diariamente?
Sim, claro.
Em algumas entrevistas que li, afirmas que a fronteira entre cair no ordinário e o literário é muito ténue e que, assim que encontraste a forma de evitar o ordinário, a escrita fluiu. Como foi para ti encontrar o lugar da literatura neste tipo de escrita que, como dizes, se adapta à história?
Eu não sei como é que fiz isso. Este livro foi escrito em dois fios da navalha. Um deles o lado ultra-romântico que o livro tem, era muito fácil também resvalar para o piroso, para o lamechas, a fronteira era muito ténue. Depois havia o lado pornográfico que era muito fácil de resvalar para o ordinário. Já são muitos anos de escrita, e teve a ver com, primeiro encontrar um tom, um tom para o livro, um tom para a voz que conta e perceber que esse tom não era nem ordinário nem piroso, depois deixá-lo falar, então a coisa já vai quase em piloto-automático. O difícil é encontrar aquela voz no início. Mas isso passa-se com todos os livros, até que se encontre uma voz o livro não agarra quem o está a escrever. E se quem o está a escrever acha que já está agarrado, está errado, vai perceber mais tarde que não. Para mim já foi quase uma questão de hábito.
Sobre o teu processo de escrita afirmas que levas a literatura “como qualquer coisa que fazes quando achas que tens de fazer” e, ao mesmo tempo referes que tens alguma solidão e é por isso que escreves, que “se não tivesses solidão não precisavas da escrita para nada”. Como é que é o teu processo de trabalho?
Nos últimos livros, nas últimas coisas, tive de me obrigar a escrever. Sou muito propenso a passar horas por dia a olhar para o ar, sem fazer nada, então tenho de me obrigar a escrever, se quiser escrever. Eu não gosto de escrever, eu gosto de ler aquilo que escrevo. A escrita para mim é um acto completamente narcísico. Escrever custa-me, escrevo devagar, escrevo mal, emendo muito. Lembro-me de que na altura em que escrevi os romances, e mesmo depois alguns contos longos, estive um ano em Berlim em que escrevia 14 horas por dia, mesmo, e se chegasse ao fim do dia com uma página A4 era uma maravilha. Esse é o ritmo de trabalho, um ritmo de insistência, de estar ali. Às vezes eu passava dias em que não escrevia uma frase, no entanto, eu tinha de me obrigar a estar sentado à secretária. E passa muito por essa insistência, por esse trabalho, por esse esforço, quase. E depois a questão de corrigir, corrigir. Corrigir muito, sempre, corrigir. As coisas nunca estão acabadas. Eu entreguei o livro e continuei a mandar coisinhas, enquanto o livro estava a ser composto. A segunda edição tem emendas. Depois acabo, acabo porque já não os leio. Mas tem muito a ver com essa coisa de insistir. Obviamente que eu conseguia viver sem escrever, vivi 12 anos sem publicar, escrevia muito pouco, mas se calhar vivo pior.
“Há noites que demoram a atravessar.” Há muito de belo e de romântico nesta expressão, na qual eu tanto me revejo. Fazes também referência a uma solidão erótica que é o reflexo de um abandono, o confronto com as feridas abertas e um vazio que fica em nós. Entrando num campo mais pessoal, quando li isto identifiquei-me automaticamente com essa erótica solidão nessas noites difíceis de atravessar. Tiveste muitas noites difíceis de atravessar? Como é que lidas com elas?
Temos sempre. Eu com a idade fui tentando perceber as coisas à minha volta. Depois de as perceber, as coisas encaixam melhor, não quer dizer que fiquem melhor, encaixam melhor e a partir da altura em que percebemos, e sabemos que as coisas têm de ser assim, que às vezes têm de ser más, porque não há hipótese de serem boas, temos de aprender a viver com isso. Eu já não passo noites em claro, aliás passei poucas, mas é uma questão quase de hábito, de aprender a lidar e perceber que as coisas más fazem parte da vida, que temos de viver com elas, não temos saída. Não há saída nenhuma.
Então és um escritor mais diurno ou mais nocturno?
Agora sim. Por questões de trabalho não fazia muito sentido estar a escrever de noite. Os outros livros, a maior parte, foram escritos de noite, porque eu trabalhava, era engenheiro durante o dia.
No teu livro dizes que a noite “precisa de outra imaginação”, que imaginação é essa que a noite precisa?
A imaginação é como um exercício da mistura entre o consciente e o inconsciente e o cansaço diminui um bocadinho a rede que separa o consciente do inconsciente. Nós ficamos mais permeáveis a determinadas coisas, então a nossa imaginação à noite é mais solta, mas só porque estamos mais cansados, tem muito a ver com isso. Eu já escrevi muito à noite, e escrevo se for preciso, mas tem um pouco que ver com o escrever em estado de cansaço, estado em que diminuímos a censura, baixamos as coisas e elas saem de outra maneira, que nós achamos que é mais imaginativa.
O que é isso de imitar vozes literárias?
Eu comecei a escrever no DN Jovem aos 18 anos e lembro-me de ter começado com um texto a imitar o Saramago, na altura tinha acabado de ler “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e escrevi esse texto, que depois até ganhou um prémio. Eu acho que nós temos de passar muitos anos a imitar os outros, se conseguirmos, até que de repente, isso aconteceu-me ao fim de 6 ou 7, de repente, escrevo um texto em que não reconheço as vozes de ninguém, e essa é a nossa voz. Até lá andei a imitar o Lobo Antunes, o Saramago, o Faria, uma série deles. Depois há autores que são difíceis de imitar, nunca consegui imitar a Agustina, porque a Agustina é muito inteligente, mesmo que imitasse em termos de estilo, ia faltar sempre qualquer coisa. Eu acho que essa coisa das vozes é muito o que os pianistas fazem, e os cirurgiões, como diz o Lobo Antunes, de fazer a mão antes de começarem a tocar e de começarem a operar. Essas imitações têm muito que ver com isso. Eu neste livro fiz uma, não sei se se nota, é uma brincadeira. Na altura em que falo do “Alexandra Alpha” do José Cardoso Pires, há ali duas páginas que são Cardoso Pires, é o estilo dele, mas foi a única, e foi por puro divertimento.
Por falar em influências, falemos do nosso caro Karl Ove Knausgård. O que é que sentes que te liga tanto a este norueguês?
Não sei. A questão de escrever na primeira pessoa e de escrever sobre ele próprio foi uma espécie de revelação, que me mostrou que é possível autoficcionarmo-nos, ou usar a nossa biografia, sem estarmos a contar a vidinha. O mal de muitos livros, dos livros que não ficam, mesmo na literatura portuguesa, é as pessoas acharem sempre que a vida deles dá um livro. Se calhar dá, dá vários, agora depende da maneira como se escreve. Contar a vidinha não interessa a ninguém, a não ser ao próprio, se não houver nessa escrita algo que aproxime esse singular, que é a vidinha de quem escreve, de uma coisa mais universal. E com o Knausgård acontece isso. A vidinha do Knausgård tem muito em que todos nós, ou quase todos nós, nos revemos. E essa é a chave dele, a identificação do leitor com aquilo. E eu identifiquei-me claro, nuns volumes mais do que noutros.
No segundo volume de “A Minha Luta”, “Um Homem Apaixonado”, numa conversa entre Knausgård e o seu amigo Geir, este diz-lhe, sobre o romance que leu dele: “Mas o que me impressionou mais foi teres ido tão longe. Nessa altura perguntei-me se terias feito bem em ir tão longe. Porque era assustador. E eu dizia de mim para mim que não era capaz de ir tão longe (…) Dizes de ti próprio coisas que ninguém diz”. Sentes que foste onde não se costuma ir?
Sim, claro. As coisas que eu escrevi não são habituais na literatura portuguesa, pelo menos. Mas esse foi também um dos propósitos, esticar-me até onde conseguisse, sem censuras, sem passar os meus limites morais, alguns, os que me restam.
Mesmo quando falas da questão deste homem que “fica na segunda linha”, um homem sem “predicados físicos”. Acho que na literatura portuguesa é muito difícil veres alguém a assumir este lado, de forma tão verdadeira e tão exposta.
A ficção serve muito para mentirmos, sobre nós próprios, sobre os outros, sobre o que achamos. Aqui aquela personagem apareceu assim, é assim. E depois , o livro é um diário, é uma coisa escrita na primeira pessoa. É um texto que, na sua ideia base é uma coisa para não ser lida por ninguém, mas pelo próprio. Então ele pode dizer ali as coisas todas que quiser. É um bocadinho também para lhe dar essa verosimilhança, ele tinha de se confessar.
Ainda em “Um Homem Apaixonado” uns anos mais tarde Geir confronta Knausgård sobre o facto de ele não corresponder ao estereótipo de escritor convencional: “As pessoas gostam de escritores escandalosos, tu sabes. (…) Isso corresponderia à expectativa das pessoas a teu respeito. Não te imaginam aqui com um esfregão nas mãos”. Achas que, a partir deste momento te tornaste um escritor escandaloso?
Não. Eu não acho que este livro seja escandaloso, sequer, nem que tenha sido visto dessa maneira. Em relação à crítica, houve só um cítico que disse que ninguém ia ler aquilo, que “a classe média instalada” não iria ter coragem de aceitar o livro. Não é o que eu tenho visto, acho que as pessoas já estão mais receptivas a ler estas coisas. É uma obra literária, não é uma coisa de pornografia pura.
E em relação a este homem solitário, de alma atormentada, que busca na devassidão a sua redenção, achas que, de alguma forma, os teus leitores te podem associar a esta imagem?
Sim, é possível, mas é-me indiferente.
E qual das devassidões te comove mais a ti, a tua ou a dos outros?
A dos outros, sim.
Ainda em Knausgård, uma das frases mais marcantes que li no primeiro volume de “A Minha Luta”, “A Morte do Pai” foi: “Não era o que lia mas a percepção que tinha de mim enquanto lia”. Voltando o bico ao prego, este escuro que ilumina aquelas personagens, esse abismo que nos ilumina a todos, iluminou-te a ti?
Não, aquilo foi como que uma busca de perceber alguns mecanismos, algumas coisas. Quando comecei a escrever o livro, em relação a essas coisas, eu já estava “iluminado”, senão também não o conseguiria escrever. Ali foi ir só mais fundo do que aquilo que eu já tinha entendido nas pessoas. E, ao escrever aquilo, diverti-me muito, de uma maneira ou de outra. Há passagens com as quais eu me ri muito a escrever, mas não me iluminou por aí além.
“São insondáveis os caminhos do desejo.” – em algum momento quiseste sondá-los com este livro?
Não, sondei-os antes. Este livro é um bocadinho o espelho disso. Aliás, este livro aparece através de uma pretensa reportagem sobre estas coisas, sobre estes lugares que eu conhecia. Os lugares são reais. A Praia da Rainha existe, o Mise en Scéne existe, e eram lugares que eu conhecia antes de escrever o livro. O livro é o registo dessas coisas, transformadas a partir da ideia de como é que a cabeça das pessoas nesses sítios pode funcionar.
Tolstoi dizia que “Se cada cabeça sua sentença, a cada coração sua forma de amar”, neste caso, a cada corpo a sua forma de desejar?
A cada cabeça sua forma de desejar. Passa, obviamente pelo corpo, desde que o corpo não seja o corcunda de Notre Dame, e depois a cabeça pode fazer o resto.
“Imerecimento”, é uma palavra tão bonita e tão forte, tão pesada que é impossível não nos encher de compaixão por aquele professor, que, por causa disso apetece abraçar e acarinhar e dizer: “Mereces sim, mereces mais.” Como é que surge este “imerecimento”?
O “imerecimento” tem muito a ver com a ideia de nós termos limites. Temos limites físicos e não podemos aspirar a algo mais de até onde esses nossos limites chegam. De vez em quando pode acontecer-nos, qualquer coisa que sentimos como “imerecido”, porque nós não temos estrutura para aquilo. Estrutura física, estrutura mental, o que quer que seja. O “imerecimento” de facto existe, nós todos não merecemos tudo, há uns que merecem mais do que outros, porque uns são mais bonitos do que outros, acabou. E o “imerecimento” tem muito a ver com isso. Ninguém está a ver uma top model a andar aí com um corcunda qualquer. Não faz sentido. E se isso acontecer é “imerecido” para o corcunda.
O teu livro tem um forte carácter religioso, e as noções de culpa e de redenção estão muito presentes ao longo do discurso. A religião está muito presente na tua vida, ou recorres a ela para dar mais ênfase ao lado do pecado?
Eu tenho uma formação religiosa, católica, fui acólito durante uma série de anos. Agora não sou católico praticante, mas continuo a ser crente, no entanto vejo isso tudo de uma maneira completamente diferente do que a igreja vê. A noção de pecado, para mim é completamente diferente, especialmente, em relação ao corpo. Mas há na religião uma coisa que me agrada muito, que são os rituais, e foi isso que eu tentei passar, porque os rituais sexuais deste homem e destes sítios, de certa forma, assemelham-se muito aos rituais religiosos de um culto. Há uma procura de transcendência, sempre, de um contacto com o transcendente e daí eu usar as coisas e misturá-las. Daí, ele usar uma batina, mais uma série de coisas que aparecem lá pelo meio, como as cenas na igreja. Sim, a religião e o sexo, para mim sempre andaram muito juntas e, ao mesmo nível, e uma não exclui a outra.
Mencionas a questão dos pecados libertinos desta personagem serem avaliados a favor dele no dia do Juízo Final, que só que ele não fez lhe será cobrado na coluna do “Deve”. Não é isto um pensamento contraditório?
Não, é um pensamento que se encaixa no que eu acabei de dizer. A minha noção de pecado não existe, de pecado sexual em termos religiosos pelo menos, pode é haver uma transgressão social. E o que ele diz é “tudo o que fiz, que aqui acham que foi libertino, no dia do Juízo Final não vai pesar nada contra mim”. A única coisa que vai pesar é o que ele não fez, que é a questão de nós termos uma vida e não a aproveitarmos, de não fazermos o que nos dá na telha. Isso sim, isso eu acho que é o maior pecado que nós cometemos.
António Coimbra de Matos diz que o seu Deus é o amor, também é a desta personagem, ou deverei dizer que a sua fé é a tal devassidão que nos salva da culpa?
No caso do personagem não há culpa. E o amor para ele é Deus e Deus é o amor. Sim, acho que o amor para ele é Deus, sim, é o Deus dele. Não a devassidão, a devassidão dele, é apenas um instrumento para chegar a esse Deus.
Continuando em António Coimbra de Matos, ele afirma que há, cada vez mais uma diferente quantidade de traços de psicose porque há uma uma menor intimidade entre as pessoas. Isto vai um pouco ao encontro da teoria do “amor líquido” do Bauman que citas no livro. Identificas, de alguma forma esta personagem com esta ideia?
Não. Aliás, eu discordo completamente das teorias do “amor líquido” do Bauman, acho que encaixa muito bem no politicamente correcto, na “criticazinha”. Mas, se nós olharmos para o passado, percebemos que as relações eram uma merda. Não eram líquidas, eram presas. A profundidade apenas servia para aumentar o ódio ou a falta de amor, pelo menos. E é essa parte que o Bauman disfarça. Não é porque agora há mais divórcios que o amor é mais líquido. Não, antes havia menos porque as pessoas ficavam presas, não quer dizer que fossem mais felizes assim. É óbvio, e claro, que tanto o Coimbra de Matos, como o Bauman, devido à idade deles, queiram acreditar nessa coisa de que antigamente é que era bom, isso, de uma certa forma, consola-os.
Esta personagem sofre de alguma neurose?
Não, antes pelo contrário. As neuroses aparecerem por haver um contrariar da ansiedade, surgem quando a ansiedade é grande. Depois há uma barreira qualquer do super-ego que faz as pessoas não agir, o que leva a um aumento ainda maior da ansiedade e, a seguir à ansiedade vem a depressão que é, no fundo, o cansaço de toda a energia gasta nessa mesma ansiedade. A neurose é apenas um movimento do nosso cérebro para nos defender dos problemas que criamos com toda a merda que existe à nossa volta, menos connosco. Porque nos dá jeito. Pelo menos não pensamos nos nossos problemas e inventamos mil coisinhas que não fazem sentido nenhum para uma cabecinha normal. Este personagem é anti-neurótico, ele não tem ansiedade nenhuma, ele faz o que lhe dá na telha, aliás isto é um comportamento quase anti-neurótico, se ele foi neurótico, foi antes. A neurose é uma coisa que nos prende e ele libertou-se. É um movimento exactamente ao contrário.
Há uma questão muito interessante, logo no início do livro, em que falas de como, a este professor, interessam a vida dos outros para “se perceber”, para lhe “aclarar o espírito”, como se ele procurasse “uma outra vida com a qual pudesse emendar esta”. Outra ideia interessante é a da máquina fotográfica que ele compra para guardar a memória daquela mulher, para se lembrar que ela existiu. Este livro, é a memória que queres guardar da vida que talvez tenhas ou pudesses ter escolhido, nessa tentativa de emendar a tua?
Não. Este livro não sou eu, este livro são coisas que me passaram pela cabeça, tem coisas minhas, mas não sou eu, é mais um.
Falando agora na relação com esta mulher. É muito curioso o facto de deixares em aberto, se aquilo acontece ou não acontece.
Isso é uma coisa que eu acho que não expliquei bem no livro. Aquilo acontece mesmo. tanto que há fotos. as fotos que separam o livro são fotos de objectos dela.
Para mim ficou em aberto se isso acontecia ou não acontecia porque, a partir do momento em que eles se conhecem e se envolvem, a personagem deixar de frequentar o Mise en Scéne e os parques de estacionamento, e deixa de ter relações com outras mulheres, passando a fazer menções ao acto masturbatório, e a mencionar que “o maior acto de devassidão é a abstinência sexual”. Esta entrega a este sentimento por esta mulher é o derradeiro acto de redenção deste homem?
Não, foi uma coisa que aconteceu, que ele entendeu que era um amor único que nunca lhe tinha acontecido e que provavelmente nunca lhe iria acontecer, é daquelas coisas que a Hélia Correia diz que acontecem uma vez por século e que ele viveu como um amor feliz. Para mim, esse é um amor feliz, não houve infelicidade nenhuma ali, ele viveu aquilo que tinha de viver com ela e ela depois desaparece no fim e pronto. Ele, não pode viver, mas isso ele sabia, à partida. Essas coisas só se vivem a dois.
Também mencionas uma personagem de Orhan Pamuk que “recolhe os despojos da amada e faz um museu em Instambul”, e ainda na vitrine que o personagem encheria com os objectos daquela mulher. Eu lembrei-me logo, até partilhei contigo, do “Museum of Broken Relationships” em Zagreb.
Este livro do Pamuk chama-se “O Museu da Inocência”.
Que objecto desta mulher, enviaria ele para este “Museum of Broken Relationships”?
Roupa interior dela.
E que objecto enviaria o José Riço Direitinho?
Este anel.
Este livro não surge por iniciativa própria. Tinhas algum projecto na gaveta que se assemelhasse a este tipo de escrita e temática? Era qualquer coisa que tu querias fazer, escrever desta forma?
Não. Tenho dois ou três romances a meio, em registos completamente diferentes uns dos outros. Este surgiu assim. Surgiu porque na reportagem que eu escrevi para a Ler, que era só sobre sexo, quando cheguei ao fim, achei que tinha mais coisas para contar, que não tinha espaço e que aquilo podia dar um livro, se eu lhe arranjasse uma história por trás e foi o que fiz.
A mim, este livro inspirou-me muito. Inspirou-me ao ponto de eu escrever dois textos a partir deste livro. Sentes que este escuro possas iluminar ou possa ter iluminado jovens escritores e abrir o espectro da nossa literatura?
Sim, eu acho que, se não escritores, pelo menos pessoas. Acho que é isso que os livros fazem, é iluminarem-nos mais um bocadinho, se não funcionarem assim, não servem para nada, só para passar o tempo. E para passar tempo há coisas mais engraçadas do que ler.
E o que sentes quando alguém chega ao pé de ti e diz: olha, escrevi dois textos a partir do livro que tu escreveste?
Nunca ninguém chegou, pelo menos sobre este livro. Mas sinto-me curioso.
Porquê, se é que isso teve relevância para ti, mas para mim foi curioso, as referências à cor amarela: uma aparição e um casaco de malha. Há alguma razão especial para este amarelo?
Não, eu acho que as aparições são amarelas. Eu sempre vi as coisas assim. Passei a ver as coisas assim, quando penso nisso, há sempre uma coisa de halo solar, e o amarelo fica bem.
Tal como no casaco de malha.
(ele sorri. As minhas unhas estavam pintadas de amarelo.)
“O Escuro que te ilumina” de José Riço Direitinho
Um homem, a sua solidão e um telescópio. Uma mulher que vive no prédio em frente, a quem conhece os traços, os gestos e até o cheiro. Apaixonado pela mulher que conhece plenamente, embora ela não saiba da sua existência, esse homem, ébrio na sua solidão, torna-se um voyeur das vidas alheias. De “olhar amoral”, este homem, imerge num mundo de devassidão, activa e passivamente, numa procura de si próprio, tentando encontrar nas histórias dos outros, a redenção que procura em si. Este livro tem pouco de pornográfico e muito de fé. É a história de um homem que, ao desembaraçar-se do seu sentimento de culpa, se sente cada vez mais perto da plenitude. Ao longo de 10 meses, este homem cruza-se com diversos abismos, com o escuro que ilumina cada uma das personagens cujas vidas visita inadvertidamente, suprindo o seu arbítrio e o dos outros nesse processo.
José Riço Direitinho escreveu “um livro que não existe em Portugal”, um livro no qual vai mais longe do que as rosas e os espinhos do amor, vai ao âmago da solidão. Um livro que nos confronta com os lugares mais obscuros a que a busca pelo nosso existencialismo nos leva. Os abismos para onde, essa procura, nos empurra. Sem culpa, sem medo, sem censura, sem metaforizar o que precisa de ser real, através de uma escrita crua, este livro confronta-nos com o escuro que ilumina o nosso interior, se assim o permitirmos.
Foto de José Riço Direitinho: António Nabo
One comment
Leio como se me escrevesses