Histórias de Lx começa, em jeito de provocação, com as palavras de um crítico. Avisa que irá comentando a peça in loco. E cumpre. Fala dos clichês sucessivos. Da sonoplastia exagerada. Diz-nos que a peça “não tem ponta por onde se lhe pegue”. Que uma cena lhe faz lembrar ‘Tati’ (supõe-se e faz sentido que seja uma evocação ao cineasta francês Jacques Tati). Mostra perplexidade “…o bebé não é bebé e o cão não é cão” e, sim, o bebé chora, mas é um boneco e o cão ladra, mas é um peluche com trela.
Há os profissionais, os da Terra, os ratos, os do restaurante, as das limpezas, os estrangeiros, o crítico do espetáculo e os cozinheiros.
A peça é feita do bulício lisboeta, de uma cidade de ‘selfies’, malas, turistas e de políticos (difícil não reconhecer a caricatura de Cristas ou não perceber de quem são as tangerinas) sedentos de votos, que fazem tudo pelo tempo de antena e forjam sorrisos para as objetivas. Não há como não identificar as personagens tipo: a gente apressada, as empregadas de limpeza imigrantes, a cigana que pede à porta do restaurante, a despedida de solteira em surtos de histeria, sobretudo a noiva quando se debruça sobre um qualquer miradouro lisboeta, o rapaz do skate, o que vende droga e gosta de ver a bola (“Tens azar nas perucas”, diz o crítico ao ator), o vendedor de imóveis a fazer negócios milionários, os despejos, a gentrificação, os tiques da estilista do Portugal Fashion (Paris, Milão, Nova Iorque espera-a, claro), ou a velhinha que parece assistir a uma aparição quando vê alguém vestido de branco atravessar o corredor. Difícil não achar familiar que o carteiro leve de volta todas as cartas seja por que os inquilinos já morreram, ou agora são airbnb, airbnb, airbnb. Aqueles ratos do porão, que interagem e coreografam no início do espetáculo são um exemplo do bom exercício de mímica e é dela que vive o espetáculo e sempre da sugestão ou de pequenos diálogos interrompidos. Lisboa é isso. Um frenesim de acontecimentos em todas as esquinas. De gente de todos os lugares, que fala todas as línguas.
Só quando, numa cena final, a velhinha do Porto nos fala da cidade, com sotaque do Norte se vai mais longe na intensidade dramática, explica o que é ser pobre, não ter oportunidades e não ser vista (e hesitamos entre reagir à caricatura saloia das pessoas do Norte e rir-nos por percebermos que ouvir dizer ‘murcão’ (murcon, na verdade) ‘dar de frosques’, ‘ir a penantes’ nos faz perceber que há algo teimosamente verdadeiro que não se rouba a alguém que vem do Norte) numa cidade cada vez mais impessoal como Lisboa. Diz que tem uma luz que encadeia. Tem, pois. Como diz a encenadora Natália Luísa, rosto bem conhecido do grande público e responsável pela encenação e dramaturgia: “Tem a ver com a luz, com o Tejo, com as populações que a habitam e com a nossa identidade enquanto povo”.
E apesar das amarguras, o poema final, cantado em modo fado, parece mostrar que Lisboa tem saudade de si mesma e da gente dentro dela. Lisboa procura-se no meio da vertigem dos dias em que as pessoas parecem não se ver e nem importar. Não há densidades interpretativas. Não há personagens reais, com textura. Não é esse o propósito do espetáculo. Há frases para pensar escritas em caixas de vinho e ardósias que falam de amor e futuro.
No final do espetáculo de Domingo estiveram os atores, a Natália Luiza, que fez, bem, questão de chamar Maria Sofia Magalhães, autora dos textos e Miguel Seabra, responsável pela assistência artística e desenho de luz, do Teatro Meridional. E foi comovente ouvir alguém que pedia mais luz para o público com pena de não ter conseguido ler e cantar a letra da música final entregue junto com a folha de sala. A Natália com o seu talento, sensibilidade e aquela ternura na voz, reservou os minutos finais para cantar com o público novamente. Antes disso uma senhora, maravilhada, com a frescura dos seus de mais de 80 anos, falava de ter marcado uma consulta por causa do período difícil que atravessava, mas que se tinha divertido tanto a ver o espetáculo que ia cancelar a consulta. E, sim, é uma deliciosa coincidência a que referia a Natália:125 personagens nos 125 anos do Teatro São Luiz. Juntem-se à festa. Em cena até dia 16 de junho no Teatro São Luiz.
Histórias de Lx, de Natália Luiza
5 a 16 de junho de 2019
São Luiz Teatro Municipal
Dramaturgia e Encenação Natália Luiza Assistência artística e Desenho de luz Miguel Seabra ESPAÇO CÉNICO Marta Carreiras FIGURINOS Maria Luiz MÚSICA ORIGINAL E ESPAÇO SONORO Rui Rebelo Interpretação Catarina Guerreiro, Luciano Amarelo, Paulo B., Susana Madeira, Vitor Alves da Silva e Catarina Ribeiro, Felipe Oliveira, Filipe Almeida, Joana Silva, Pedro Caetano, Telmo Duarte, com os atores estagiários Andreia Galamba, Beatriz Peixoto, Catarina Berkemeier, Constança Brandling, Filipe de Castro, Filipe Costa Morais, Hugo Teixeira, Margarida Leão, Rúben Brandão, e a participação das alunas da Universidade Sénior de Marvila Cila Ferreira, Dina Félix e Maria Augusta Ferreira TEXTOS Natália Luiza e Maria Sofia Magalhães INSTRUMENTOS GRAVADOS Bruna de Moura (violoncelo), Filipe Rebelo (guitarra portuguesa), Rini Luyks (acordeão) Assistência de encenação Nuno Távora e Catarina Moreira Pires (estagiária) Assistência de cenografia Marco Fonseca Assistência de figurinos Rita Osório OPERAÇÃO TÉCNICA Nuno Figueira APOIO GERAL Catarina Pereira e Sara Luzio (estagiárias) REALIZAÇÃO DE MAKING OF Patrícia Poção Produção executiva Rita Conduto e Susana Monteiro ASSESSORIA JURÍDICA Diogo Salema ASSESSORIA DE GESTÃO Mónica Almeida DIREÇÃO ARTÍSTICA DO TEATRO MERIDIONAL Miguel Seabra e Natáli Luiza COPRODUÇÃO Teatro Meridional e São Luiz Teatro Municipal
Foto de Estelle Valente