Anteontem foi dia do Teatro – todos percebemos! Todos os anos eu costumo escrever ao senhor, mas este ano acho que preferiria convidá-lo para jantar. Ainda lhe liguei mas ele não atendeu, parece que tinha uma chamada importante de Cuba… não me importei. Já estou habituada, aliás, que ele me despreze e ignore os meus convites.
Há uns dias, fui atrás dele e descobri onde ele vivia. Fiquei espantada. Podia pensar-se que o Teatro viveria num teatro, mas não, vive num barracão grande ali para os lados da Trafaria. Estava a acabar de pintar as paredes de preto e tinha, num canto, umas cadeiras empilhadas que tinha ido comprar ao IKEA uns dias antes. “São para os convidados” disse-me o Teatro mais tarde.
Toquei à campainha. Era de esperar que o Teatro tivesse uma campainha com as pancadas de Moliére, mas não era uma música do Pharrel; disse-me que gostava de se sentir mais Happy quando as pessoas batessem palmas. Convidou-me para um chá e eu aceitei. Disse-me também que estava muito triste comigo porque eu tinha dito que ele cheirava mal dos pés e dos calos que tem na boca, e que isso era de uma doença que ele tinha apanhado e estava a custar a passar. Fiquei envergonhada de ter maltratado o Teatro e mudei de conversa:
Porque vives aqui, Teatro? Ele contou-me que tinha sido expropriado há uns anos, porque a Câmara estava mal de finanças e que precisava de alugar o teatro à Vodafone para apresentar o programa do Rock In Rio. E foi uma chatice porque ele estreava a reposição da 15ª versão do Godot uns dias depois. Depois perguntei-lhe se ele gostava de viver ali, ele lá me respondeu que era um pouco húmido e que lhe fazia um bocado mal à sinusite alérgica, mas que gostava das paredes pretas; eram mais frias que as cortinas, mas que gostava. Também lhe perguntei se tinha corrido bem o Godot, ele disse-me que ninguém tinha aparecido, provavelmente porque já toda a gente sabe que ele, afinal, não chega e as pessoas gostam de ser vistas… pobre teatro, abatido, infeliz, sozinho com as cadeiras do IKEA vazias.
Mas a culpa é tua, disse-lhe eu a tentar ser simpática… É que não há paciência para tanto queixume bolorento, aposto que estás a preparar um segmento de reposições do Gil Vicente. “Novas abordagens” diz ele… Novas abordagens?? Tens é que ser mais performativo, Teatro, estar depois da linha da frente da contemporaneidade, num estado que é para lá da performatividade, que é do corpo preso nas palavras que não saem porque não precisam. Ele correu comigo à pancada, obviamente. Não estava preparado para aquilo.
Podia-se esperar que o teatro ficasse a matutar naquilo, mas não deu a mínima importância ao que lhe tinha dito. Soube disso há uns tempos quando recebi um convite em casa para o “Auto do Brexit do Inferno” com um elenco de 20 pessoas. “Lá anda o Teatro cheio de gente outra vez”, pensei eu, “ao menos é no barracão, sem palco e pode ser que, com tantos actores em cena, não se perceba que o teatro está vazio”. Fiquei com uma pena muito orgulhosa do (meu) Teatro.
(este texto está também publicado em https://anacarinapaulino.wordpress.com)