Às vezes é preciso olhar de dentro para que o olhar de fora faça mais sentido.
Faz hoje um mês que pisei, oficialmente, o palco do TNDMII com um grupo dos meus favoritos. Dos que se tornaram meus favoritos pela arte da doação e partilha.
Não me lembro da altura em que conheci o trabalho da Raquel André. A capacidade de olhar o banal e vê-lo com os olhos de quem vê uma obra única está em cada um de nós mas poucos conseguimos atribuir significância a isso. A Raquel consegue.
Para terminar a sua coleção de pessoas a Raquel procurou, desta feita, todos os que a observam. Com os reflexos desta pandemia de distanciamento também o plano da Raquel foi alterado: fez algumas oficinas online e durante o mês de Maio organizou duas oficinas presenciais no TNDMII. Dessas extraiu 11. E de entre esses 11, eu.
Olhando para as pessoas que estiveram no mesmo dia que eu estive parece-me que a escolha deve ter sido difícil: todos somos espectadores na vida, todos temos histórias inesquecíveis. Mas fomos nós que representámos todos: o João Limão, eu, a Julia Catita, a Fátima Barreto, a Patrícia Santos, o André Conceição, o David Gorjão, a Raquel Pedro, a Ana Ribeiro, o Luís do Paço e a Marina Preguiça.
Enquanto elencava este grupo fui passando por cada um dos nossos encontros e sorrindo a esta diversidade que nos torna tão próximos. Desde os 21 aos 73 anos. De Covão do Coelho ao Magoito passando por Santa Comba Dão.
Desde esse dia distante de Maio fomos tendo encontros, todos os fins de semana. Para a Raquel e a sua equipa nos conhecerem mas para nós nos conhecermos e criarmos este espírito de partilha e causa comum. Fomos encontrando temas transversais (a invisibilidade da mulher na história, a necessidade de compreensão do outro, a luta por ideais…) e fomos criando a matriz sobre a qual foi criado espectáculo.
Nós, meros espectadores não esperávamos tudo o que nos foi dado. Conhecemos a Odete que nos gravou os sons, o Sérgio que criou a página onde as memórias vão sendo guardadas, o João e a Margarida que entre colocar e retirar microfones aturavam a nossa excitação amadora de quem se sente do lado de lá, de quem se ouve em microfones. O Carlos que dirige a cena, desde que não apareça… Mas a quem vamos mandar beijinhos em cada entrada naquela sala. O Jorge que guia as máquinas do teatro.
E a Cláudia. A Cláudia Gaiolas, responsável pela co criação da peça deu-me tudo como só dá quem sabe que é assim que também se recolhe. A Missanga, produtora, que como se não bastasse o dia-a-dia exigente da produção teve ainda de fazer marcações de testes COVID. Licenças, autorizações. Marcações.
Foram muitos. Muitas. Todos. Fomos abraçados pelos tentáculos de um polvo teatral que nos recebeu quase nos fazendo esquecer que éramos e vamos sempre continuar a ser espectadores.
Este trabalho é, hoje, à distância de um mês ainda demasiado íntimo. É ainda muito difícil de descrever ou definir em palavras. Mas é também a chave para uma leitura diferente dos espectáculos. É o descodificador de tudo que não vemos em cima do palco e que tanto contribui para os resultados finais. É a medida, cada vez mais certa, para compreender como ter a representatividade da realidade em palco, como compreender o lugar do outro se o sítio de onde eu o vejo é o meu.
A relação entre o artista é o espectador é única, como único é o olhar da Raquel. E a beleza de tudo isto é, como ela diz, que um não pode existir sem o outro.
Fechamos um ano dos mais difíceis a nível mundial. Dos mais impactantes para nós como sociedade. Para nós como seres humanos. Para nós como profissionais. Hoje desejo o que desejei no dia 18 de Julho na última sessão de apresentação: que sejamos sempre mais no palco – seja real ou metafórico – a tentar esbater essas diferenças, essas distâncias, essas desigualdades.
Hoje, como naquele dia, estou feliz de ter estado com aqueles meus novos amigos em palco, de ter falado de histórias minhas, de ter levado pela primeira vez os meus pais a um teatro. Hoje, como naquele dia, estou consciente de que tenho de saber cada vez mais sobre o meu lugar de escuta para saber efetivamente qual é o meu lugar de fala.
Agora a Raquel e a equipa vão para a Noruega. Depois para Cabo Verde. E fico a aguardar que mais salas deste país a programem pois somos muitos os que podemos ser colecionados. E somos muitos, mas mesmo muitos, os que devemos ver esta peça.