Vivemos no Zoom.
Vivemos no Zoom mas continuamos a morrer na vida real.
Morremos. Acabamos. Somos peças de um puzzle mundial que, quando estamos dentro do caixa parecemos apenas mais uma. Mas não, ao tentar completar o puzzle, se eu faltar, a imagem fica incompleta. Ok. Se calhar fica incompleta naquele cantinho mas dá para perceber a imagem à mesma.
Sim, mas naquele cantinho faço falta.
Entramos pelo apartamento Zoom da Andrezza e vemos uma instalação: roupa, como um estendal. Uma mesa. Fotografias. Imagens, bonecos. Adereços.
Moedas.
Enquanto percorremos a vista pelo que nos é apresentado, objetificado, vamos ouvindo em voz off Guimarães Rosa – talvez para me lembrar que tenho ali o livro dele para ler. No Verão.
E a imagem começa a focar-se na Andrezza. De um quadro visual passamos a dois – a Andrezza a ser filmada pelo computador enquanto é filmada a ser filmada pelo computador. Uma Matrioska de Andrezzas.
O texto começa a enquadrar Andrezza pessoa, num espaço – o Sertão. E, como tudo o que remete para as nossas raízes, somos levados pela mão. Sentamo-nos no chão, numa espécie de roda enquanto a ouvimos contar as histórias, lendas e ditos populares da região que a pariu. Os rituais, a Caetana. A dicotomia mulher/animal para justificar a morte. A finitude.
E sem querer, damos por nós a relembrar as nossas próprias histórias, as nossas próprias tradições em torno da morte. As nossas despedidas aos nossos vivos.
No sertão a morte é poética. Não se morre. Não nos apagamos. Não terminamos. Encantamo-nos. Fomos Encantados. E com essa imagética vamos entrando mais fundo na história que nos é contada.
Os Santinhos. Os Santinhos são aqueles cartões que também se encontram em Portugal nos velórios – com a foto da pessoa, as datas de nascimento e morte. Uma frase sobre a pessoa. Uma frase bíblica. E desse conceito geral de morte, de mortos, de peças de uma zona do puzzle em que não pertencemos, começamos a colocar rostos, datas, nomes nas pessoas. E parentescos.
Deixamos de ser contabilistas numa folha de excel e passamos a ser ouvintes de cada história – igual a tantas outras mas única por si só.
A Andrezza vai aproximando os mortos de si, dos seus mortos. E nesse vórtice de intimismo vamos colocando o nome dos nossos, as memórias dos nossos. E, inevitavelmente, a recordação da nossa despedida dos nossos – que hoje em dia tem sido tão difícil.
Olho para uma caixa de bolachas “Favorita”, retangular, ferrugenta. Olho para esta caixa com “restos” da minha avó – eletrocardiogramas, recibos de pensão. Envelopes com contas feitas. Fotografias de familiares que não reconheço. Versos. Poemas.
E torno minha a frase dita pela Andrezza a meio do texto: “Nós guardamos coisas porque não podemos guardar pessoas”.
Ontem percebi que a minha avó não morreu – encantou-se.
E, juntando as moedas necessárias para a travessia ficamos a aguardar a vinda de Caronte pensando se teremos dinheiro para pagar tudo o que temos perdido.
Esta palestra-performance foi apresentada na maratona de palestras-performances na Complexo Sul 2020 e criada no laboratório criativo “Museu, teatro e história”, com Daniele Avila Small
Andrezza Alves: Doutoranda em Artes Performativas e da Imagem em Movimento na Universidade de Lisboa, Mestra em Criação Artística Contemporânea pela Universidade de Aveiro e Licenciada em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela UFPE. Artista, pesquisadora e produtora com atividade ininterrupta em criação, ensino, produção e pesquisa nas artes performativas desde 1996. Na pedagogia do teatro desenvolve trabalhos com artistas, educadores e não artistas (especialmente jovens e crianças em situação de risco social, cegas, com limitações de movimento e déficit cognitivo). Pesquisa técnicas de direção de atores, interpretação e o trabalho corpovocal do performer. Atualmente participa da pesquisa Práticas Desejantes e investiga o conceito de Ciência de Artista.
A Complexo Sul conta com o patrocínio de Itaú Cultural, Goethe-Institut Rio de Janeiro e Consulado-Geral da Alemanha Rio de Janeiro
Fotografia: Guto Muniz – Foco in Cena