“Estamos sempre sós, de resto somos assim,: sós, e isso não tem remédio, nunca.”
A solidão e a melancolia em José Riço Direitinho
Há sempre os que começam pelo início. Eu muitas vezes também prefiro começar pelo início, mas neste caso, comecei pelo fim. Não foi uma escolha deliberada, mas antes um acto inconsciente. Primeiro chegou o último e, por último, procurei os primeiros. E nos primeiros, vejo desenhar-se o último. É o que nos acontece sempre, quando estamos muito à frente e decidimos olhar para trás!
José Riço Direitinho, autor que entrevistei no final do ano passado, revela-se-me ainda mais quando regresso ao (seu) passado e leio, ao virar do ano, “A Casa do Fim” (1992), o “Breviário das Más Inclinações” (1994), “O Relógio do Cárcere” (1997), “Histórias com Cidades”(2000) e “O Escuro que te Ilumina” (2018). No primeiro, dez contos apresentam-nos um escritor inebriado pela ruralidade e pelos seus tradicionais costumes e crenças, no segundo, o romance que nos dá a conhecer José de Risso, um alter-ego do autor, a escrita aprofunda, ainda mais, a experiência rural do escritor, no terceiro, também romance, essa ruralidade persiste, mas damos conta de um outro lado que tenta afastar-se dela, pulando para outro patamar, que constrói através da construção das personagem e dos factos históricos e políticos que as determinam. Em “Histórias com Cidades”, surge-nos, através de sete histórias ébrias do frio de uma Europa do Norte completamente urbana, um novo e fresco José Riço Direitinho que, definitivamente, nos prepara para o último que encerra em si, de um ponto de vista urbano e muito contemporâneo, todas as temáticas que veio desenvolvendo ao longo dos 26 anos que separam a sua primeira da sua última publicação.
Podia ter optado por escrever sobre cada uma em separado, mas a verdade é que eles entraram em mim, como um caminho que atravessei depois de já ter chegado ao meu destino. Um caminho com curvas e desvios que me fizeram andar para trás e para a frente no tempo, como se a leitura destes livros me tivesse enclausurado numa máquina do tempo defeituosa e obstinada. A viagem começou em 2018, de onde fui catapultada para 1994, de onde voei para 1992, para depois aterrar em 2000 e regressar, finalmente, a 1992. Há sempre os que começam pelo início. Da mesma forma que há sempre os que terminam pelo fim. Eu muitas vezes também, mas neste caso, comecei pelo fim e terminei no início.
Apesar de existirem temáticas que atravessam toda a sua obra, como a solidão, a memória e a inevitabilidade do destino, apoiada na ideia de recomeço constante, podemos, claramente, identificar José Riço Direitinho dos anos 90 e 2000, tendo em conta que, “Histórias com Cidades” é uma obra que marca a viragem de foco do escritor entre a pesquisa e a recuperação da ruralidade antiga, em que as mezinhas, a espiritualidade e a identidade política do país, se destacam enquanto temas fulcrais que o distinguia, para a abordagem de questões contemporâneas e urbanas relacionadas com a evolução da própria sociedade onde, e apesar de permanecer alguma espiritualidade, os comportamentos se distinguem, principalmente a nível sexual e de uma maior expressividade das personagens femininas.
Em “O Breviário das Más Inclinações”, através da qual o escritor cria um alter-ego que, tal como referido na entrevista que lhe realizei, queria que fosse um personagem mau, José de Risso, torna-se, ao longo da obra, uma figura de anti-herói. Temido por todos, devido à marca de nascença em forma de folha de carvalho que lhe inchava e sangrava nas costas, nos tempos de más horas, depressa se tornou, após a morte da avó, curandeiro de mezinhas, estatuto que esta lhe havia deixado em testamento de sangue. E, durante a sua curta incursão pela vida (morria-se muito cedo nas 3 primeiras obras de Direitinho, principalmente de enforcamento, e de loucura também), foi a salvação de muitas “maleitas do corpo e do juízo”, tanto a Homens quanto a animais, e pouco antes do seu final, o assassino do lobo que ameaçava a aldeia de Vilarinho de Loivos. José de Risso era, portanto, uma natureza de muita coragem!
Em “O Relógio do Cárcere”, apesar de escrito depois, fazemos uma viagem de regresso a Vilarinho dos Loivos, às suas mortes, personagens, crenças e lugares. Com uma acção que decorre com 100 anos de diferença, (re)conhecemos a Casa do Seixo, abandonada em o Breviário, o próprio lobo de Espadañedo, que José de Risso mata 100 anos depois, e até um prenúncio da sua morte, sendo que podemos encontrar no Velho, traços da própria personalidade do primeiro, ambos levaram uma vida de solidão, Risso física, o Velho, espiritual, repleta de indiferença, aceitando a desgraçada que lhes foi traçada à nascença, da qual ambos sabem, não poder escapar. Apesar de encerrarem em si um mesmo mote soturno e (quase) impotente, encontramos, na sequência das três obras de 90, uma escalada de emoções para um lugar menos negro, repleto de melancolia, mas com mais esperança. Em o Relógio, há muitas referências ao recomeçar, seja do dia, seja da vida. A obra em si reclama essa noção, apresentando uma estrutura circular, a acção passa-se no decorrer de um ano, inicia-se na Quaresma de 1982 e termina na Quaresma de 1983, inicia-se com a morte do filho (trespassado pelos 3 dentes de uma forquilha) e termina com a morte do pai (devorado por três mastins pretos). O Relógio do Cárcere, a prisão ao destino.
Como já foi referido, a viragem do século, traz à obra de Direitinho, uma mudança de tempos. Os paradigmas, esses continuam lá, continuam os mesmos, mas a abordagem assume novos contornos e poder-se-iam apelidar de frescos, se o soturno não continuasse a distinguir a obra deste escritor. Se o tempo é o de agora, se da aldeia passamos para a cidade, de Portugal passamos para a Europa do Norte, para trazer depois essa bagagem de regresso ao nosso país. O termo que me ocorre para descrever o ambiente que, ao longo das 5 obras se nos apresenta, é melancolia. Existe sempre um estado melancólico associado às personagens que o escritor nos apresenta, associados à ideia de aceitação, seja do destino ou do entorno em que se desenvolvem, de falta de esperança ou de expectativa, de uma eternidade aliada à memória, uma nostalgia premente, uma solidão permanente!
Outra questão que se observa e que se contrapõe às personagens das obras iniciais, são as noções de casualidade e de anonimato, tanto em Cidades como em O Escuro. Cada conto do primeiro apresenta-nos personagens diferentes, mas cujo entorno e história se vão desmultiplicando ao longo do mesma ideia, a de encontros casuais, com pessoas que nunca mais se encontrarão, em ambientes desconhecidos. O Escuro vive em torno de um personagem que se envolve de forma mais ou menos directa em actividades íntimas de estranhos, cujas vidas vigia como um faroleiro numa noite de nevoeiro.
Talvez que, nas duas últimas obras, José de Risso, tenha tornado para ver o mundo como se nos apresenta agora, célere, fugaz, casual, regado de amores perversos, de amores incompletos, de almas atormentadas que, para fugirem ao suicídio, se entregam e mergulham nos prazeres das carnes, nas distopias das suas fantasias. Talvez que, José de Risso se reveja mais nesta vida, em que se pode, finalmente, recusar salvar os outros, sem nunca perder o homem bom que existe numa personagem que se quis má.