Os sapatos são feitos para andar…
Mas e se os nossos sapatos tivessem uma boca, como uma memória vaga dos desenhos animados de infância, da bota botilde e outros que tais, e em vez de se limitarem a andar fossem também capazes de nos contar as histórias dos seus caminhos?
É nesta base que se cria e se desmonta toda a história de “Os Sapatos do Sr. Luiz”. Quantos sapatos passaram pelos corredores, pelo palco, pelo átrio? Quantos pés transportaram sonhos, lutas, obstinação, talento? Usando os nossos próprios sapatos somos levados docemente pela mão da Madalena Marques: subimos, descemos, corremos, sentamo-nos, levantamo-nos. O objetivo é abrir os olhos e tomar atenção – os muitos sapatos que por cá passaram podem estar em qualquer lado e não os queremos assustar. Devo salientar que os adereços desta peça são soberbos na minúcia, na qualidade, na beleza.
Começamos calmamente, a entrar ainda no teatro e seguimos os passos do Sr. Luiz, o senhor sonhador que sem se preocupar com mais do que o que o fazia sentir vivo dá ordem de construção – uma vida ligada à arte, dividida entre Portugal e o Brasil e que nos deixa, ao fim destes anos todos, e já após uma reconstrução este meu, nosso teatro. Dos corredores da construção de um ideal passamos a quem lhe deu protagonismo: os artistas. E, enquanto vamos sabendo também partes da história de vida de Sarah Bernhardt ouvimos enlevados os seus sapatos femininos a contarem a chegada ao Rossio, vinda de Paris.
Pé ante pé, continuamos sempre em busca desses sapatos escondidos à vista de todos e, passando pela teia de palco, pelos bastidores chegamos à parte do teatro que muitas vezes não nos lembramos: os que permitem que tudo funcione – os funcionários do Teatro. Nesta altura, porque esta é também uma história cronológica, chegamos ao cinema – a altura em que a grande maioria dos teatros da cidade se adaptam para receber esse mistério animado. Pelos pés do Marreco vemos algumas das imagens dos filmes da época – calo-me, respiro fundo e agradeço internamente a todos os que permitem que a Cultura continue ali, que continue disponível. Agradeço a todos os teimosos de sempre e os que estão ainda para vir e que nos vão mostrar que só uma sociedade onde a Cultura está disponível é que é uma sociedade pela qual vale a pena lutar e onde vale a pena viver.
Sinto que estou a terminar o percurso e que os meus próprios sapatos já tem mais qualquer coisa para contar e eis que fechamos com chave de ouro: Mário Viegas. Enquanto subimos as escadas vamos ouvindo aquele texto, aquela voz:
“Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece”
Aprendemos mais sobre o Mário – até eu que tive a sorte de o ver ainda na TV quando era criança. Os sapatos do Mário davam-lhe a arte de sonhar e defender que todos, mesmo todos conseguiríamos ter o que precisamos desde que nos acompanhe a ousadia de levar o “Sonho ao Poder”. Com este slogan afastamo-nos, aproximamo-nos da saída.
Vou para casa a sentir que vale a pena – que temos de andar mais neste caminho, que se eu for uma nêspera não quero ficar deitada, calada e a esperar o que acontece.
Os Sapatos do Sr. Luiz, de Madalena Marques
PESQUISA E CONCEÇÃO Madalena Marques e Susana Pires
INTERPRETAÇÃO E MEDIAÇÃO Madalena Marques
ADEREÇOS Ângela Rocha, Lydia Neto e Toninho Neto
PRODUÇÃO EXECUTIVA Casa Invisível
Mais informações em https://www.teatrosaoluiz.pt/espetaculo/os-sapatos-do-sr-luiz/