“Os inimigos da liberdade, peça para três escravos” é uma peça escrita e encenada por Manuel Pureza. Está em cena na sala estúdio do Teatro da Trindade até ao dia 29 de Dezembro.
O texto recebeu o prémio Miguel Rovisco, edição 2018/2019, atribuído a novos textos teatrais. Interpretada por Cristóvão Campos, João Craveiro e João Vicente, o espetáculo tem como elementos cénicos apenas uma estrutura metálica que simboliza a pedra arrastada pelos escravos e as correntes que os amarram. Sendo a travessia pelo deserto porventura a metáfora da passagem do tempo as correntes são essa marca de uma ligação, que ora encaram como punitiva, ora necessária, ao sistema, ao trabalho, ao dever, uma amarra que, porventura, permanece mesmo depois de quebrada… Afinal a liberdade pode ser uma ficção e é nesta angústia permanente, de uma procura qualquer que não sabem definir, de um desânimo e de um entusiasmo oscilantes, que se fazem as personagens, personagens que, a dado momento, são também narradores que nos explicam quem são, que dúvidas os assolam.
E nesse diálogo questionam o sentido do coletivo, da partilha daquele trajeto. Vemos o contraponto entre quem se resigna e quem se insurge, sendo que a todo o momento esses papéis se podem revelar desconfortáveis e mutáveis. Há quem queira a mudança, mas não saiba viver com ela, quem a dispute para depois se perder no caminho. Percebem-se as agruras do conflito e de como, numa espiral de desespero, todos os argumentos são simultaneamente contra argumentos, embora cada um se tente convencer do contrário.
Se ficamos sem saber a razão da opção do encenador por pausas ritmadas que vão marcando o espetáculo, como ponteiros do relógio, a entrega dos atores é suficiente para que deambulemos pelos pormenores do texto e pela sua iromia.
Na folha de sala, Manuel Pureza evoca a letra da música de Jorge Palma para nos explicar que aqui, como na canção “o sistema que nos consome e aleija”. No espetáculo parece que a esperança morre no preciso momento em que nasce, no instante em que as grilhetas se quebram. E é nesta dinâmica de liberdade, sistema, tempo e deserto, que vamos podendo refletir e até rir, em diálogo surdo, com os atores.
Vale a pena esta incursão nesta caranguejola de tempo, sem bússola, mapa ou GPS. E preparem-se para enfrentar o vosso deserto. Parece ser mesmo para fazer percorrer o deserto de cada um que os três escravos nos mostram o seu.