“O silêncio e o medo” é um espetáculo encenado pelo francês David Geselson disponível, de 5 a 8 de março, na sala online do Teatro D. Maria II. Como é descrito na sinopse a peça ilustra: «As cicatrizes da História na vida uma pessoa: Nina Simone». A «Tetraneta de um nativo-americano, casado com uma escrava negra africana, Nina Simone é a herdeira de uma parte da história dos Estados Unidos da América e carrega consigo quatro séculos de história colonial», avança o texto sobre a obra.
O ator e encenador David Geselson, formado no Teatro Nacional de Chaillot, em Paris, regressou a Lisboa depois de levar à sala Garrett a peça “Doreen“, baseada nas décadas de vida em comum partilhadas por Doreen Keir e pelo filósofo André Gorz que lhe dedicou a obra “Carta à D. – História de um amor”, um amor vivido até ao último suspiro…
Eunice Kathleen Waymon, nascida em Tyron, na Carolina do Norte, oriunda de uma família humilde e religiosa, é conhecida pelo seu nome artístico: Nina Simone. Nina, a lenda do jazz, que combinou várias influências, desde a música clássica, o blues, o folk, o soul, o R&B, o gospel e o pop . Na peça o seu nome é explicado pela marca do seu amor de infância perdido, Edney. ‘Nina’, do espanhol ‘menina’, terá adotado o nome Simone em homenagem a Simone Signoret, depois de ter visto, com Edney, o melancólico filme de amor, Casque d’Or, em que a atriz francesa participava.
A mágoa de ser trocada e esquecida pelo seu primeiro amor, de ser rejeitada pelo Instituto de Música Curtis, um conservatório em Filadélfia, a dor de um casamento fracassado e violento com Andrew Stroud, que veio a ser seu agente, e da perda do pai que foi ficando debilitado por um cancro, surgem ao longo da peça como algumas das suas grilhetas. O percurso de Nina é feito de um fardo pesado onde estão anos de História de opressão, esclavagismo e colonialismo e que carrega, com sofrimento indignado, aos ombros. As personagens interpretadas por Elios Noël e Laure Mathis, um casal branco onde a mãe de Eunice trabalhava no final dos anos trinta e que se tornaram amigos de Nina, são também narradores e espectadores do seu percurso.
A cantora transpõe para o seu piano solitário desolação e guarda na voz e nas suas letras amargura, mas também combatividade e o espetáculo assenta nessa amargura.
Nina, a ativista antirracista, está presente nesta peça que não deixa de destacar o seu legado de luta e inconformismo. A cenografia inclui a projeção de vídeos de discursos de Malcolm X e Martin Luther King e são evocados ataques dos Ku Klux Klan à comunidade afro-americana recordando a convulsão social dos anos 60/70 e os movimentos sociais de combate ao racismo aos quais se sentia profundamente ligada. A cantora não queria ser silenciada e não aceitava ser subjugada pelas leis do homem branco.
«You don’t have to live next to me
Just give me my equality
Everybody knows about Mississippi
Everybody knows about Alabama
Everybody knows about Mississippi Goddam»
Nina, interpretada por Dee Beasnael, parece sempre condenada à solidão sem que nada possa aplacar, verdadeiramente, a sua fúria e inquietação. Fica, em alguns momentos, a dúvida se poderá haver subtilezas, nuances de personalidade que pudessem ser mais exploradas, sobretudo tendo em conta a personalidade multifacetada de Nina Simone. A opção parece ser a de explorar o lado irascível, a força e raiva indomável, numa abordagem que, apesar de tudo, nos agarra. Laure Mathis, uma atriz que também conhecemos do cinema francês de Philippe Garrel, a professora de piano de Nina, dá-nos o contraponto, com uma interpretação feita de sensibilidade e subtileza. A presença e a interpretação do ator Kim Sullivan, pai de Nina, também não passa despercebida. Ainda assim, a encenação parece ter como foco a mensagem e é nesse conteúdo informativo e no enquadramento histórico, do qual Eunice é herdeira, que reside grande parte da sua riqueza.
A peça transporta dor e revolta e parece guardar uma espécie de tentativa de ajuste de contas com a História. Fica a sensação de que nessa batalha pelo resgate da memória, crua e real, identificando os opressores e oprimidos, recusando conquistas e descobertas inventadas e enaltecimentos de impérios sangrentos, a perda provocada pela segregação, humilhação e morte nunca é inteiramente compensada. Nina acaba solitária, em França, numa espécie de vertigem, de loucura inquietante e é dessa solidão permanente, dessa angústia pungente, que o espetáculo é feito. E que belo tributo a Nina Simone.
«I wish I knew how
It would feel to be free
I wish I could break
All the chains holdin’ me
I wish I could say
All the things that I should say»
‘I wish I Knew How it Would It Would Feel to Be’
Nina Simone