«O mundo todo.
Todos querem ser amados.
Quando eu tinha 17 podia fazer tudo.
Era tão fácil.
As minhas emoções estavam à flor da pele
Agora é cada vez mais difícil manter contacto com as minhas emoções.»
«Noite de Estreia», em cena no Teatro Carlos Alberto, é uma peça adaptada e dirigida por Martim Pedroso com base no filme de 1977 do realizador americano John Cassevettes.
O filme é uma peça dentro de um filme e é sempre um desafio este efeito matrioska. Um filme sobre um espetáculo. Trata-se de um argumento forte que nos provoca e inquieta. Que obriga o público a pensar e cada um dos espectadores a dizerem para si mesmos aquilo que não têm coragem de confessar nem em silêncio. Nesta peça vivenciamos essa fronteira ténue entre a interpretação e a realidade. A atriz principal (Dalila Carmo) é Myrtle Gordon, uma vedeta a braços com as suas inquietações pessoais, que enfrenta os seus medos mais profundos quando é confrontada com a necessidade de encarnar uma personagem onde ela diz não se encontrar e é nessa tensão que se apresenta em todos os ensaios. O encenador (João Reis) só quer o espetáculo de pé, o público a vibrar, que a atriz continue a ter a mesma piada que antes. Ela não quer levar um estalo em cena e reage, contrariada, nos ensaios enquanto o colega, ator, condenado a uma personagem antipática, como ele mesmo classifica e que não deixará lastro de memória no público (João Araújo), se insurge contra os bloqueios de Myrtle. A atriz chora, grita, descontrola-se, atingiu o limite e sente-se sozinha nesse estado em que ninguém, mesmo os que se habituaram a trabalhar com ela e a idolatrá-la (Heitor Lourenço), a querem ver, estado do qual a tentam, à força, tirar.
Tudo pode acontecer naquele palco onde se entrega, o lugar sagrado onde as emoções são tudo, mas a atriz rejeita aquela personagem que encerra uma visão de mulher que não aceita. A peça traz à colação o envelhecimento, o envelhecimento para uma mulher numa sociedade machista, patriarcal, que acredita que a mulher tem que ter filhos, casar, adorar crianças, que normaliza a agressão sobre mulheres_ física, verbal, emocional _que considera que uma mulher não se cumpre se não corresponder a um padrão pré-determinado sobre o que tem de querer, de desejar, de esperar do seu futuro. Myrtle não aceita e enfrenta uma crise com o seu corpo, as suas rugas, a beleza que já não é a mesma, o querer sentir-se amada como todos querem e se repete em voz off, e encontra dentro dela a fã, de 17 anos (Margarida Bakker), que chora desbragadamente quando a vê ao sair do espetáculo e morre de seguida num acidente. Myrtle explica-nos, entre goles de álcool (qual Humphrey Bogart) como é sentir a solidão, as noites de solidão, os dias de solidão, esses dias e essas noites que são gigantes quando já não se tem 17 anos, quando o rosto já tem marcas de passado, quando a beleza escapou repentinamente, quando se tem medo, muito mais medo do que antes. A atriz repete à autora do espetáculo (Maria José Paschoal) que a idade não interessa para nada, e sabe que está a mentir, por isso se recusa ou se esquiva a dizer a sua idade, enquanto repete que não tem 60 anos, que não tem calores da menopausa e que não quer interpretar aquela personagem ou vão pensar que é uma velha.
E é por se sentir tão frágil, tão carente de amor, que o encenador, preso na sua incontrolável vaidade e receoso do fracasso da peça, repete, à frente da sua mulher (Marta Félix)_ personagem à qual, ao contrário do filme de Cassavettes, parece faltar alguma densidade dramática_ que a ama depois de lhe atender o telemóvel interrompendo um ato de intimidade. O encenador que tudo faz em nome do espetáculo e da necessidade de ter de volta a sua estrela.
As participações em vídeo (realização e montagem de Ruben do Valle) proporcionam o efeito matrioska, desta feita o cinema dentro do teatro, participações que combinadas com a envolvente sonoplastia (Carlos Morgado) e o desenho de luz de José Álvaro Correia, a cenografia de Jean-Guy Lecat e os cuidados figurinos de João Telmo, dão a este espetáculo uma dinâmica especial.
A interpretação arrepiante de Dalila Carmo e a consistência dos experientes João Reis, Heitor Lourenço e Maria José Paschoal proporcionam um espetáculo intenso, memorável, que deixou a sala, cheia, do Teatro Carlos Alberto ao rubro, emocionada, a aplaudir de pé esta belíssima adaptação de Martim Pedroso. Uma noite de estreia. A mais inquietante de todas.