Falar de No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos somente como um documentário que celebra o quadragésimo aniversário da Companhia Nacional de Bailado talvez não seja a maneira mais adequada de nos aproximarmos do filme. Se é certo que essa dimensão institucional é evidente, considerá-la como o núcleo do trabalho de Cláudia Varejão seria uma atitude que o limitaria ao estatuto de “filme de encomenda”, e que ignoraria a intenção que a realizadora tenta anunciar desde o princípio. Ao baptizar um filme sobre dança com um poema de Adília Lopes que descreve certo comportamento numa sala de cinema, Varejão procura uma relação entre as duas artes que irá expondo silenciosamente ao filmar a rotina dos bailarinos: ambas trabalham sobre a luz e o movimento, num jogo de ocultações e revelações do que se faz no escuro.
A pergunta que abre o filme, aliás, parece ser a génese do projecto de Varejão, bem como o grande mistério com que se debatem as pessoas que nos vai dando a conhecer – compreender a razão do movimento, a centelha que nos anima e faz mover, é encarado como um processo que não tem fim e que não se consegue articular com propriedade por palavras. Apesar do carácter fortemente confessional do filme, que dá ao espectador acesso a fragmentos de histórias e trocas de impressões sobre os bastidores e ensaios, ficamos com a sensação de que pouco do que vai sendo dito consegue captar a essência daquilo que acontece em cima de um palco. Os segredos são declarados, portanto, por outra via; e a verdadeira eloquência dos bailarinos não é verbal, mas coreográfica. Sendo os seus depoimentos sinceros, só ganham força e tangibilidade quando os vemos concretizados em quedas, hematomas, gestos repetidos até à exaustão e respirações ofegantes (num excelente trabalho de som de Adriana Bolito).
O que os bailarinos têm para contar, contam através dos seus corpos, e Varejão relaciona-se com eles como se dançasse também. A câmara, não sendo especialmente inventiva, reproduz e aprende com a leveza dos movimentos que regista: são eles que determinam a estrutura do filme, que corresponde a um conjunto relativamente livre de vários momentos de preparação de espectáculos da Companhia (L’Oiseau de feu de Stravinsky tem particular destaque) que a realizadora foi recolhendo e seleccionando ao longo de 2015. Por esse motivo, o que fica de No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos é sobretudo a beleza de alguns instantes ampliada pelo uso cuidado do preto e branco. Durante o filme, não são raras as ocasiões em que percebemos estar perante o trabalho de alguém interessado em manipular a luz, criando novos lugares a partir dela; e as opções fotográficas de Varejão em certos planos (como ocorre também em Ama-San [2016]) são por vezes o principal motivo de interesse. O cuidado com que filma a antecipação nos rostos de quem se prepara para entrar em palco e tem de permanecer escondido na penumbra, a título de exemplo, é notável e ilustrativo dos seus méritos de composição.
Tendo vencido o prémio de melhor filme na competição internacional de documentário da última edição do Festival InShadow, No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos fez até agora o seu percurso sobretudo em meios relacionados com a dança. A consonância entre a visão da realizadora e a de todos os que mostra embrenhados e perseverantes no seu trabalho, bem como o ritmo rigoroso do filme, tornam-no, no entanto, merecedor de ser conhecido por outros públicos. Enquanto esperamos por Amor Fati, descobrir o início do caminho cinematográfico de Cláudia Varejão é uma proposta mais do que satisfatória.
No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos, de Cláudia Varejão (2016)
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