Um dos poemas mais desconcertantes de Mário Cesariny termina com uma questão: “Como acabar com um corpo corajoso e humílimo / morto em pleno exercício da sua lira?”. Durante o visionamento de Lucky (2017), não é improvável que a um leitor do poeta surja a memória desses versos. Com efeito, numa parte significativa dos objectos artísticos que interrogam a morte variações daquela pergunta são colocadas. O primeiro filme realizado por John Carroll Lynch insere-se nesse grupo por vários motivos, e a resposta que é dada, no que ela tem de libertador para a personagem do título (bem como para o seu actor), anuncia um cinema auspicioso.

Tem-se descrito Lucky como uma homenagem à carreira de Harry Dean Stanton, falecido poucos dias antes de o filme estrear, que aqui aparece no auge da aura projectada pela sua figura em papéis anteriores. Envolto pela monotonia do quotidiano, Lucky parece funcionar enquanto súmula e conclusão lógica da sua galeria de personagens: o aspecto de quem foi fustigado pela vida e o isolamento quase total em relação aos outros assumem aqui tons elegíacos, e a velhice que o actor sempre aparentou carregar dentro de si encontra finalmente na narrativa a sua expressão mais concreta. Nunca o víramos tão heroicamente exposto ao seu próprio fim, tão aberto a um combate directo com a vulnerabilidade; e é neste ponto que a fronteira entre o actor e a personagem começa a esboroar-se. Dizer que Dean Stanton é Lucky, como se escreve no cartaz promocional do filme, não deve ser entendido no sentido comum da representação de um papel, mas de forma literal. Há coincidências biográficas evidentes, a mesma atitude de honestidade brutal perante a existência; e as palavras de Lucky são as que nos habituámos a ouvir da parte de Dean Stanton. Só ele pode dar à personagem a gravidade que o filme por vezes faz emergir com comedimento, ao mesmo tempo que a sua desenvoltura habitual a faz reverberar ainda mais – veja-se a extraordinária sequência musical na festa e o crescendo dramático até à surpresa.

Essa ambivalência de Dean Stanton, situada entre a escuridão cantada por Johnny Cash numa das escolhas mais pertinentes da banda-sonora e os vislumbres de uma terna aderência à resignação, imprime em Lucky o seu timbre, e é o rasto através do qual o devemos ver. Sente-se no filme o peso das coisas, sem que elas cheguem a asfixiar as personagens graças à sobriedade com que Carroll Lynch as trata. Nos diálogos de Lucky com os poucos vizinhos, irrompem algumas feridas escondidas, perspectivas irreconciliáveis sobre a realidade, ecos de um passado mais agitado e que dormita agora sob o solo do ermo lugar em que vivem. No bar em que todos se reúnem, contam-se histórias que poderiam constituir enredos de westerns e recordam-se momentos triunfantes; mas as preocupações do presente, além da inquietação com a saúde de Lucky, revolvem à volta de incidentes como o desaparecimento do cágado da personagem de David Lynch – que várias vezes dirigiu Dean Stanton, inclusivamente em The Straight Story (1999), o filme mais atípico que realizou e a que Lucky deve muito –  e o que se pode aprender em palavras cruzadas. Será a conversa com o marine, na sua abertura à espiritualidade, a dar a chave que resolve aqueles destinos aparentemente insignificantes. Confrontadas com o desaparecimento de tudo, as personagens fazem um último brinde; defronte do vazio, ensina-lhes Lucky, “o que há a fazer é sorrir”.

Talvez uma das maneiras mais humanas de “acabar com um corpo corajoso e humílimo” seja então respeitar as suas marcas e cicatrizes; deixá-lo acender um cigarro, esboçar um sorriso, e partir de novo pela paisagem deserta ao som de I Stole the Right to Live. E talvez essa seja também uma das maneiras mais dignas de acabar um filme. Já não há para Lucky nem Dean Stanton mais estradas por onde viajar – Paris, Texas (1984) ficou lá atrás, e é tempo da despedida. A aceitação dessa verdade – “coisa que importa”, como defende junto dos companheiros – constitui a sua catarse no fim de uma vida longa e arruma o filme, que finda ao mesmo tempo que a sua personagem porque é feito da mesma matéria que ela: Lucky é Dean Stanton “em pleno exercício da sua lira”.

Lucky, de John Carroll Lynch (2017)
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Categorias: Cinema

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