O espaço do Museu de Lisboa tem praticado uma linha programática de espectáculos que explora as ruínas do seu teatro romano como berço da arte dramática. Desde 2016 que aí são apresentadas obras da antiga Grécia e do antigo Império Romano, dando a conhecer ao público textos de Aristófanes, Menandro, Sófocles e Eurípides, numa perspectiva que pretende atribuir àquele palco do século I da nossa era a experiência daquilo que terá sido o Teatro na sua origem.
A convite do Museu de Lisboa, André Murraças aí apresenta Antígona, uma tragédia sofocliana do século V a.C. que reflecte sobre o poder das leis divinas e das leis estatais sobre a vontade do Homem, versa sobre a condição feminina, moraliza sobre a tirania e a liberdade, e concede alguns exemplos sobre o que é ser cidadão do Estado.
A encenação de Murraças é conforme o espaço a a programação que ocupa: numa versão bem atalhada, simplificada e comprimida do texto, o encenador foca-se na tragédia de modo concentrado, num exercício cénico que é uma aula de Teatro Clássico com a duração de uma hora.
O elenco escolhido é composto por Cláudio de Castro, João Duarte Costa, Leonardo Proganó, Vítor Alves da Silva e Vítor Silva Costa, que interpretam todas as personagens, inclusivamente as femininas. O prólogo deste espectáculo esclarece tal opção de interpretação, assim como contextualiza e familiariza o público com a prática de Teatro da Antiguidade Clássica. Num momento pedagógico, informativo e elucidativo o elenco apresenta-se e explica que no tempo da peça que vão apresentar as mulheres estavam interditas de representar nos teatros, pelo que tanto as personagens femininas como masculinas eram interpretadas por homens. Esclarecem que não existia a figura do encenador, mas antes a do didaskalos (em grego, professor ou instrutor), que era um actor mais experiente que estava responsável por encenar cada espectáculo, e ensinam que o acto de ir ao teatro fazia a parte de um culto religioso de homenagem aos deuses e que, por isso, ali estávamos como exemplo de quem vai a uma missa. O momento parece demasiado didático, mas o que é facto é que estes elementos servem de âncoras para um público que não é assim tão familiarizado com as tragédias gregas e romanas, pejadas de nomes e personagens distantes e de narrativas semidivinas de uma cultura que nos é longínqua. E o tom pedagógico mantém-se, como lugar seguro, sempre que no desenvolver da acção se esclarece, como um aparte, quem é o Deus X ou a personagem Y que em cena tem interferência.
A tragédia tem como cenário natural as próprias ruínas do teatro romano, é entre as pedras antigas que poucos adereços, cadeiras e figurinos, partilhados e manipulados pelos actores, transformam o elenco em figuras de época. A abordagem não é épica, mas é historicista, seguindo, depois do prólogo expositivo, uma via de interpretação que explica a narrativa trágica sem grandes artifícios, mas com opções funcionais e eficazes. Assim, o espectáculo tem uma dramaturgia que se rege por uma lição, uma aula sobre Antígona, sobre as consequências de determinadas escolhas e os resultados que a morte da heroína teve no cargo de poder de Creonte.
Nas interpretações destaca-se a performance de João Duarte Costa, cuja personagem do Coro transmite uma intemporalidade e uma ataraxia que se traduz no elemento cómico inesperado da tragédia de Sófocles e do espectáculo de Murraças. De facto, a figura do Coro é a mais frequente na dramaturgia clássica: o que a interpretação deste actor pratica em cena revela um pensamento dramatúrgico cuidado em que demonstra que esta personagem pode ser a mesma em todas as tragédias, pelo que já não se perturba ou surpreende com qualquer acontecimento anunciado pelo Mensageiro. Num tom blasé, pautado pelo sarcasmo e ironia, as suas intervenções são reveladoras dos clichés existentes dentro das narrativas trágicas, ao mesmo tempo que torna mais terrenos os momentos de elevação das personagens nobres de Antígona.
O calcanhar de Aquiles deste espectáculo prende-se com momentos de introdução de excertos de textos de Federico Garcia Lorca, Judith Teixeira e Johan Olof Wallin (no momento em que se vela Polinices morto; durante o encontro de Antígona e Hémon no cárcere…) que são pouco ou nada sustentados pela dramaturgia que ali se desenha, fragilizando o exercício cénico pela ausência de eco que tais momentos produzem em cena. Existe também alguma confusão no código de figurino, que nem sempre esclarece sobre a personagem que está a ser interpretada por cada actor.
Distingue-se o ritmo do espectáculo e a sua relação de proximidade com o público, uma encenação simples, mas eficaz, que se desenvolve por via de um trabalho de actores virtuosos, que transformam a pedagogia em teatro, e vice-versa.
30 de Julho de 2021, Teatro Romano/Museu de Lisboa.
Texto: Sófocles. Encenação, dramaturgia, cenografia e figurinos: André Murraças. Interpretação: Cláudio de Castro, João Duarte Costa, Leonardo Proganó, Vítor Alves da Silva e Vítor Silva Costa. Costureira: Alda Cabrita. Produtora: Diana Almeida. Produção: Teatro do Vão d’Escada. Um espectáculo Um Marido Ideal.
(Este texto está também publicado em www.ocalcanhardeaquiles.wordpress.com )