Era uma vez um país assim… cinzento… macambúzio. Em que existiam umas personagens com braços, tentáculos enormes.
“Era uma vez um país
Onde entre o mar e a guerra
Vivia o mais infeliz
Dos povos à beira-terra”
Nesse país as escolas tinham as crianças separadas: raparigas para um lado, rapazes para outro. Ensinava-se o que vinha nos livros, que somos todos descendentes de um povo de heróis, descobridores, conquistadores. Mas, o que lemos nos livros é normalmente a história contada por quem vence.
Mas como conseguimos conhecer a história? O que temos de fazer para a conhecer?
O Teatro do Vestido, com a peça apresentada incita quem assiste a investigar: a ler, a perguntar. A querer saber sempre mais. Porque a memória é algo que queremos manter mas principalmente porque começamos a chegar a uma altura em que já não somos mais do que os filhos e os netos da Revolução de Abril. Não fizemos parte desse momento, já só o ouvimos contar. Mas calma, vamos devagar porque vale bem a pena a viagem.
Entramos na sala de aula e começamos a conhecer um pouco aquela história. Encaramos uma sala de aula e uma parede de malas: uma espécie de fronteira que nos remete para a não passagem e ao mesmo tempo é composta de artigos que levamos em todas as viagens.
De uma forma despretensiosa mas intensamente verdadeira vamos então conhecendo alguns pormenores dessa história. 48 anos de uma ditadura (palavra difícil)! Mas como foi possível? O que significou? E antes? O que havia antes? Para haver um depois tem de haver sempre um antes, não é?
Dão-nos a conhecer as dificuldades de um povo amargurado, o povo da sardinha para três, do primeiro par de sapatos que se ganhava quando se saía da terra (aos 6, 7, 8 anos – as idades das crianças da sala e a idade a que o meu próprio pai tinha quando ganhou o seu par de tamancos para vir trabalhar para a capital – sozinho!)
As prisões! As proibições! A PiDE!
48 anos de memórias contidos em aproximadamente 1 hora é alucinante! Mas com mestria assistimos a essa corrida desenfreada: passam os anos 1930, 1940… chegamos a 1958 e…
“Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.”
E ouvimos a história de um general sem medo que se chamava Humberto e que tentou pela via justa a mudança que queria para si e para os seus. Mas não conseguiu e a contagem de tempo continuou. Continuou sempre, sempre, mas de forma diferente… Porque tinha deixado um pé de feijão da Esperança no coração dos que se sentiam enclausurados.
“Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.”
Vamos começando a ver uma mudança nas personagens – começam a peça encarquilhadas, como que dobradas sobre o seu próprio destino, como que resignadas. Mas esta esperança, esta semente vai fazendo os ombros levantar, os olhos olhar em frente. Toda esta mudança tem efeito também no ritmo da peça, no figurino e no som… A música entra. Estamos a aproximar-nos da madrugada, aquela da nossa Sophia, que todos esperávamos . E chega, com a senha! E com os passos arrastados de quem caminha para a luta.
“Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.”
As cores invadiram a rua, deixámos de viver num país a preto e branco, cinzento. E passaram 45 anos! Ainda nem conseguimos ultrapassar a duração daquela nuvem escura (a palavra difícil). Mas agora, agora podemos ir ver peças de teatro – podemos até não ir e não concordar com elas. Mas os artistas têm direito a partilhar as memórias, temos direito a partilhar a nossa opinião sem sentir o olhar do lápis azul por cima do ombro. Podemos ser livres para compreender, para aprender. Para ir ao Teatro! Para levar as nossas crianças a peças que as tornem seres pensantes, com conhecimento de causa e não apenas descendentes do povo heróico e vencedor que muitas vezes temos nos livros.
“De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.”
Obrigada Teatro do Vestido por, à vossa maneira usarem tão bem o desejo do Ary que apresento acima em itálico e estarem deste lado, do lado dos que querem que a revolução se cumpra.
Foram estas as Portas que Abril me abriu – em 1974, e hoje, por intermédio do S. Luiz.
Era Uma Vez um País Assim: Contar bem Contadas a Ditadura e e Revolução, de Joana Craveiro
Até 7 de Abril
Famílias: sábado e domingo, 11h e 16h
Escolas: segunda a sexta, 10h30 e 14h30
Conversa com os artistas após espetáculos para escolas
TEXTO E DIREÇÃO Joana Craveiro
COCRIAÇÃO E INTERPRETAÇÃO Estêvão Antunes, Francisco Madureira, Inês Rosado e Tânia Guerreiro
MÚSICA / SONS Francisco Madureira
CENOGRAFIA Carla Martinez
ASSISTÊNCIA DE CENOGRAFIA Inês Minor
FIGURINOS Ainhoa Vidal
ILUMINAÇÃO João Cachulo
PRODUÇÃO Cláudia Teixeira e Joana Cordeiro
ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO Mafalda Pereira e Elisabete Rito
COPRODUÇÃO Teatro do Vestido e São Luiz Teatro