Elmano Sancho estreou‐se como encenador em 2014, com Misterman, de Enda Walsh, espetáculo que lhe valeu o prémio de Melhor Ator de Teatro da Sociedade Portuguesa de Autores. Estreado em Lisboa no Teatro da Comuna e reposto no Teatro da Politécnica, o espetáculo foi apresentado em inúmeras cidades portuguesas, bem como na cidade brasileira do Rio de Janeiro, no âmbito do Festival Internacional de Teatro da Língua Portuguesa. Em 2015, encenou o seu segundo espetáculo, I Can’t Breathe, no Festival Temps d’Images, pelo qual recebeu uma Menção Especial do Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro. O espetáculo esteve nomeado para Melhor Peça de Teatro de 2015 pela Sociedade Portuguesa de Autores.
Na sua criação de 2015, Sancho reflete sobre a ligação entre a exposição e total visibilidade da pornografia e a sociedade contemporânea. Um actor de Teatro e uma ex-actriz de filmes pornográficos encontram-se com a esperança de entender a crescente ausência de intimidade, a necessidade urgente em tornar tudo visível, a sensação de sufoco e indiferença, o cansaço generalizado e, sobretudo, para evitar o fim anunciado do mistério e da ilusão nas suas vidas.
Precisamente a propósito da questão da invisibilidade, em 2019 Elmano Sancho apresentou-se no Porto com Damas da Noite onde, em conjunto com as duas Drag Queen “Lexa BlacK” e “Filha da Mãe”, Elmano procura o seu lado feminino, dado que – tal como é assumido em cena – à nascença, o seu pai queria uma rapariga, à qual daria o nome de “Cleópâtre”. Como refere, depois de um momento em frente ao espelho: “Apenas o pénis escondido entre as pernas e a mão a descobrir e a acariciar o novo sexo”. E este será o mote para toda a peça: o que é ser mulher? É a genitália que define o que é ser mulher? Ser mulher é ser feminina? Mulher Cisgénero? Mulher Transexual? Mulher com um semblante masculino? Estas são algumas das questões exploradas, assim como Lexa BlacK palestra sobre o facto de ser negro, gay e Drag e de como isso, naquele teatro, naquele espaço é um ato político.
O cenário é composto por painéis acrílico opalino que ocupam o fundo da cena. Ao centro, uma entrada, com umas escadas, que divide os painéis em partes iguais. Ao fundo, voile branco. O público entra e depara-se com as silhuetas e as sombras dos atores que se encontram atrás dos painéis. A luz é quente e forte, em tons laranja.
A parte de representação propriamente dita e anterior aos painéis é ocupada por Filha Da Mãe, DJ, que põe música. No palco, 3 tripés (2 com micros de mão – o terceiro micro está com o ator Elmano Sancho), uma mesa de acrílico com material de som e um micro de mesa. À esquerda um baloiço em acrílico, suspenso por correntes, à direita três correntes que servem de cabides.
Neste cenário, as duas Drag ajudam Elmano na sua transformação, desde dicas para fazer playback a técnicas estéticas para arranjar as sobrancelhas, o tipo de indumentária, as perucas e as pestanas falsas. Nesta sua demanda, Elmano cruza a vida noturna dos bares com a realidade teatral. Como numa das falas Filha da Mãe indica:
“Estas pessoas aqui?/ É muito fácil./ O que acontece se não as souberes entreter?/ Adormecem ou vão embora./ Ninguém te vai insultar ou atirar uma garrafa à cara. Elas não estão alteradas pela droga ou pelo álcool./ Ninguém vai querer apalpar-te à força./ Se perguntares a alguém de onde é, ninguém te vai responder que é da cona da tua mãe.”
Esta justaposição é deveras interessante na medida em que tenta contrapor duas realidades: a do mundo noturno e a da suposta elite cultural que vai ao teatro. Nesta contraposição, a primeira realidade é supostamente mais agressiva, a segunda mais domesticada. No entanto, qual a mais honesta? Qual a mais verdadeira? Numa outra passagem, quando Elmano está já vestido com roupas lidas socialmente como femininas, ele presenteia-nos com uma reflexão pertinente sobre este binómio do que é lido socialmente como masculino e o que é lido socialmente como feminino:
“Os que me veem agora como mulher passaram a olhar-me de forma diferente./ Se existir toque, ele será mais fácil, mais perigoso, mais violento. Mesmo sem autorização, uma mão invasiva no ombro, na cintura, no rabo./ Na minha nova boca de mulher a palavra perderá subitamente força./ Os meus argumentos tornar-se-ão frágeis.”
Aqui a reflexão torna-se cada vez mais imbuída das opiniões sociais, cada vez mais mergulhadas na ideia patriarcal do corpo feminino como algo frágil e de utilidade púbica. Numa palavra, Elmano perde o seu privilégio de homem cisgénero e passa a ser lido como mulher. As leituras que recaem sobre ele (ela) são diferentes. O assédio toma outras figuras e o respeito cai por terra. E é aqui que esta peça é tão rica. As várias camadas que são exploradas, desde a comparação de públicos à comparação dos tratamentos diferenciados em função dos sexos que estão em confronto, a questão do racismo e as questões interseccionais: como um homem gay e Drag vê a sua situação, já de si frágil, se a isso tiver aliada a questão racial.
A narrativa vai continuando e é visível o esforço do encenador e intérprete em mergulhar na cultura Drag e respetivas nuances, chegando a performar uma coreografia com as suas duas companheiras ao som de “Donatella”, de Lady Gaga. A maioria das músicas utilizadas remetem para a dita cultura gay e do mais recente reality show RuPaul Drag Race, onde em cada temporada várias Drag Queens são desafiadas em múltiplas provas a mostrar o seu “CUNT” (num jogo óbvio com o turpilóquio homónimo, embora aqui remeta para o acrónimo “Charisma, uniqueness, nerve, and talent”, i.e., “Carisma, Originalidade, Audácia e Talento”) para serem coroadas a próxima American Drag Superstar.
Foi este programa que levou às bocas do mundo a discussão sobre o que é o Drag durante a década de 90 – já para não falar dos períodos anteriores, pese embora os motins de Stonewall, ocorridos no já longínquo ano de 1968 – os bares LGBTQ eram escassos e ser o que na altura se indicava como Travesti não era bem visto e não tinha verdadeira visibilidade social. Um imenso preconceito obrigava estas pessoas a serem, na maioria das vezes, “entretenimento proibido”.
Ao mesmo tempo que estes programas americanos trazem para o domínio da discussão pública estes assuntos, esta peça leva a mesma discussão para o teatro. Damas da Noite coloca questões ao público e os seus atores mostram a sua arte, quer com os vários figurinos, como com as competências para a dança e magníficas espargatas, com a revelação de figurinos ocultos (perucas e roupas que surgem inesperadamente) técnicas que têm lugar de destaque na representação.
Na última sequência do espetáculo, quando as duas Drag dão a sua missão por cumprida, a personagem interpretada por Elmano Sancho tem um diálogo em francês com uma imagem holográfica da mãe, vestida de Nossa Senhora, no decurso da qual ela lhe pede para ele tirar a roupa e para parar de pensar como seria se fosse mulher. Não obstante, ainda lhe indica que não bastam uns tacões de agulha e uma peruca para se tornar mulher. Na opinião dela, todos são seres divinos, são energia feminina e masculina. O diálogo termina com o intérprete a perguntar quem é o nosso anjo da guarda e ocorre um blackout. Aqui o primeiro apontamento negativo: nesta fase do espectáculo não existiam legendas pelo que o público que não dominasse a língua francesa não teria acesso a esta parte do diálogo do ator com a sua mãe.
A construção do texto cruza cómico de situação com cómico de linguagem e há vários referentes da cultura Drag pelo que se torna mais significante para uma tipologia de público que normalmente não está nos teatros nacionais. Embora a peça não pareça ter um tom panfletário ou político, a verdade é que a sua própria existência naquele espaço institucional é político e demonstra que a diversidade teatral é algo de positivo, permitindo levantar as questões do assédio numa outra dimensão: não são apenas as mulheres as suas vítimas, mas sim todos aqueles que se apresentam como femininos e cuja existência quem performa o masculino se sente legitimado a invadir e a violar.
Em suma, a peça é eficaz na forma e na estrutura, consegue recriar o espaço noturno e as questões de género e permite que o público tenha acesso a uma realidade que seguramente lhe não é tão próxima. Mais do que isso, é mais um passo em frente pela reclamação de espaços para todos. Retira esta condição da penumbra e obriga o espectador a normalizar esta manifestação artística, ou seja, a entendê-la numa zona de conhecimento e não de marginalização.
Entrevista de Elmano Sancho ao Coffeepaste
Damas da Noite
Texto e encenação: Elmano Sancho
Interpretação: Elmano Sancho, Dennis Correia aka Lexa BlacK, Pedro Simões aka Filha da Mãe, Marie Carré (vídeo)
Espaço cénico: Samantha Silva
Desenho de luz: Alexandre Coelho
Figurino de Elmano Sancho: Olga Amorim
Figurino de Filha da Mãe: Guilherme Gamito
Figurino de Lexa BlacK: Dennis Correia, João Maria Oom
Assistência de encenação: Paulo Lage
Produção executiva: Nuno Pratas
Coprodução: Culturproject, Lobo Solitário, TNDM II, Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, TNSJ
Foto: Sofia Berberan