Escrevo este texto ao som da 7ª sinfonia de Beethoven.
Ontem fui assistir à Carta de Mónica Calle.
A sala, composta. A fila para entrar, ordeira. Podemos até voltar a um confinamento como se espera hoje ser anunciado mas todos sabemos que dificilmente se deve a alguma “irresponsabilidade” por parte das estruturas culturais do país que se adaptaram, reinventaram e se têm mantido à tona ainda que com sapatos de cimento calçados.
Na introdução a Mónica, visivelmente emocionada, fala-nos num jeito muito dela sobre a necessidade de partilhar esta peça. Sobre a necessidade de manter a esperança. A Fé. A resiliência em conseguir juntar o máximo de artistas em palco.
A antestreia de uma estreia que será adiada.
As 29 intérpretes começam a peça despindo-se de preconceitos. E nuas começam por, individualmente, mostrar a sua fragilidade. Um corpo. Uma unidade de medida. Um individuo.
Aqui começa a transformação delas (e a minha).
Alinham-se, criam uma estrutura humana. Um muro celular. E rapidamente começam a respirar a uma só voz. O movimento rítmico estende-se pelos 29 corpos. Com apontamentos de luz precisos e ao som do coro destas vozes vamos sentido a aproximação da onda humana. Após este momento cada uma das intérpretes vai buscar o seu instrumento e repete, agora com recurso a ele, a música que primeiramente tinha trauteado.
Com as ondas do segundo andamento da 7ª sinfonia de Beethoven (que oiço novamente agora) acompanhamos a fluidez de entrada e saída de instrumentos, de combinações de intérpretes.
Podia continuar a descrever precisamente cada uma das partes que acompanhámos nestas duas horas, mas sinto que não consigo pôr em palavras o que senti. A peça da Mónica, ainda que repetindo o mesmo andamento de Beethoven rege-se, ela própria, por um conjunto de andamentos independentes, mas interligados: com instrumentos, com dança, com os corpos. Indo ao mais fundo da resistência do corpo. Usando de toda a sua beleza para transmitir este Allegretto.
E chegámos ao fim – todas as intérpretes, com mais ou menos experiência, com mais ou menos conhecimento do instrumento que tocam mostram que podem fazer algo individualmente, sozinhas. Mas também sabem e transparecem que juntos somos mais fortes. Num ano duro em que a solidão acompanhou cada um dos nossos corpos desnudámos as fragilidades dessa solidão. Ao mesmo tempo, acho que ficámos todos com a maior certeza de que juntos somos mesmo mais fortes, mas que só somos indivíduos porque vivemos em comunidade, fora da comunidade somos pontos perdidos no Universo.
Há algum tempo que não saía de uma peça com os olhos marejados. Porque a Mónica e o seu grupo de trabalho (artistas, técnicos) conseguiram colocar essa semente da esperança no meu peito. No mesmo sítio onde recentemente se encontra a impaciência, a resignação, o cansaço, algum medo. Nesse mesmo sítio foi colocada uma semente que vai ajudar a passar os próximos tempos.
Carta
direção Mónica Calle
com Ana Água, Ângela Flores Baltazar, Beatriz Almeida, Berta Vidal, Brígida Sousa, Bruna de Moura, Carolina Varela, Cire Ndiaye, Cleo Tavares, Eufrosina Makengo, Inês Pereira, Inês Vaz, Joana Campelo, Joana Santos, Joana de Verona, Kristina Van de Sand, Lucília Raimundo, Madalena Rato, Mafalda Jara, Mafalda Tuna, Maria da Rocha, Maria Inês Roque, Mariana Correia, Mariana Sardinha, Marta Félix, Miu Lapin, Mónica Calle, Mónica Garnel, Roxana Ionesco, Sara Miguel, Sílvia Barbeiro, Sofia Dinger, Sofia Duarte Carvalho, Sofia Miguel Castro, Sofia Santos Silva, Sofia Vitória
direção musical Martim Sousa Tavares
desenho de luz José Álvaro Correia
assistência de encenação José Miguel Vitorino
produção executiva Sérgio Azevedo
produção Casa Conveniente / Zona Não Vigiada
coprodução Teatro Nacional D. Maria II