Num ano em que um dos maiores desafios é conseguir viagem entre concelhos em Portugal, as tão recentes e, ainda assim, tão remotas viagens parecem-nos apenas memórias vagas.
É agarrando nessa condição que entramos em “Atlântico” – enquanto somos instruídos pela Leonor Cabral nos procedimentos de segurança vamos entrando nessa viagem imaginária. O Tiago, como nosso timoneiro, olha o horizonte.
Sentamo-nos.
Após sete apitos curtos e um longo estamos preparados a ser os homens lançados ao mar. Com o cirúrgico e meticuloso espírito crítico a que estamos habituados vamos sendo apresentados às duas histórias: separados por pouco mais de 500 anos e seguindo uma mesma travessia fazemos os dois percursos: Pedro Álvares Cabral e Tiago Cadete são os dois protagonistas: enquanto um, à descoberta trilha um oceano desconhecido com a única imagem ilusória de ser o portador da verdade suprema – a cristianização de povos como salvação de todas as almas – o outro desmistifica o glamour da viagem de cruzeiro e aquele conceito de viajante peregrino que costumamos ouvir – a maior beleza da viagem está no caminho e não no destino.
Num espaço cénico simples conseguimos que a atenção seja precisamente direcionada para as palavras que ouvimos. Entre descrições pormenorizadas e o nosso pequeno momento de Karaoke não há possibilidade de perder a atenção – não sendo uma apresentação que exiba muito movimento, os momentos de mudança de posição ou de movimentação do Tiago são nos pontos precisos para não estarmos apenas a ouvir uma história mas a ouvir um contador: um contador que usa os seus adereços, por sinal também simples mas suficientes, para ir lendo as suas páginas de diário.
Com os já habituais apontamentos irónicos que despertam mais mentes do que o próprio apito do cruzeiro vamos passando por cada uma das festas e cada um dos momentos temáticos deste com o olhar irrequieto e curioso de quem sempre viu entrar e sair estes grandes gigantes dos oceanos pelo Tejo. Pelo binóculo de uma (ir)realidade franca rimos das dissonâncias de quem, por 15 dias, decide fazer tudo o que não faz em terra firme anos inteiros. De quem se solta durante as férias como se andasse agrilhoado uma vida. De quem se deita e aproveita o sol, lê, ri nos mesmos trajetos esclavagistas onde os corpos não tinham espaço, não sabiam o que os reservava e onde as lágrimas se cruzavam com as gotas de oceano.
E a mensagem do Tiago, fazendo a ligação a alguns dos trabalhos anteriores, é principalmente esta: a abertura de um espaço de pensamento, de uma contra-argumentação que nos permite estar mais perto (ainda que tão longe) da verdade da História. A História é sempre escrita pelas mãos de quem vence – ou tem sido até aqui. Mas esta frase deveria ser reescrita para falar de versão da História e não de História. Com trabalhos como este, o Tiago abre a porta a esta reescrita: Descobrimentos / Colonização devia ser uma dicotomia ensinada na escola para estimular o sentido crítico e a análise de todos os factos. Porque a verdade está algures ali, no embate das duas ondas provocadas pela subida da maré.
Atlântico, de Tiago Cadete
3 – 11 dezembro 2020
Teatro Nacional D Maria II