A palavra grega para útero é hysteron de onde deriva também a palavra “histeria”, que se pode definir, segundo a psicanálise, como uma patologia que compreende “aquela em que predominam as angústias e fobias”. Portanto, “histeria” é, num certo sentido, ter o útero na boca, “falar pelo útero”, em sentido figurado. Assim, segundo a psicanálise, “histérico/a” é tudo o que “diz respeito ao útero, às afecções do útero”, ou seja, típico da Mulher; “histérico/a” compreende tudo o que deriva numa preocupação emotiva exacerbada, que Sigmund Freud fez cunhar como sendo um desequilíbrio.
“Ser histérico” carrega a sua carga negativa devido às teorias psicanalistas. Mas se regressarmos à origem das palavras, (salvaguardando as actuais questões e definições de género, que podem alterar a percepção do que se segue), podemos entender que “ser histérico” é um modo de ser que é genuinamente feminino, um modo de entender e de se relacionar com o mundo que é característico da Mulher. Assim, ser histérico é colocar-se perante o mundo, compreendê-lo e falar sobre ele sob a perspectiva da Mulher.
As três sozinhas é um espectáculo de Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas, Sílvia Filipe, apresentado no Teatro Nacional D. Maria II no contexto do 36º Festival de Almada. É um espectáculo histérico*, e as três protagonistas são histéricas*: é um espectáculo que fala sobre a Mulher, o seu papel na sociedade e no universo familiar, revela o modo como as três lidam com o próprio corpo, com a profissão e com o dia-a-dia, desvenda frustrações e preocupações políticas, expõe dúvidas, dificuldades, inseguranças e vulnerabilidades.
As três actrizes comportam-se como arquétipos da Mulher, elas são Sereias, Moiras, Bruxas, convocam Frida Kahlo, Maria Callas, Simone de Beauvoir, Isadora Duncan, entre muitas, muitas outras: o que experimentam são clichés e lugares-comuns (sem prejuízo do espectáculo), que são o que definem, identificam e reconhecem a maioria das mulheres nos papéis que a vida (não só o palco) lhes dá.
No Teatro, o espaço da Mulher é quase sempre reservado à tragédia. Mesmo no género cómico, a presença da personagem feminina acarreta quase sempre uma tragédia pessoal. Seguindo um registo mais intimista e aparentemente pessoal, biográfico, As três sozinhas satirizam as suas tragédias, tornam cómicas as suas frustrações e desenvolvem um espectáculo compensado entre o assunto sério e a ironia. As interpretações equilibradas e dinâmicas, que transpiram cumplicidade, são fortes: outra coisa não seria de esperar para quem conhece as protagonistas no desempenho de outros trabalhos, onde interpretam quase sempre personagens e vidas que não são as suas.
Assim, as três de As Três Sozinhas revelam uma grande entrega e generosidade ao falarem em nome próprio, ao servirem-se das suas biografias como roteiros do espectáculo, ao partilharem com o público parte das suas vidas, dos seus corpos, das suas cicatrizes físicas e emocionais. O sentido de humor de Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas, Sílvia Filipe serve sobretudo para revelar e gozar com a composição dramática, e com a questão da expectativa do público relativamente ao discurso da Mulher sobre a Mulher.
O aspecto sofisticado das três actrizes, elegantemente vestidas por José António Tenente, contrasta com a simplicidade do discurso; o brilho das lantejoulas hiperboliza o artifício próprio do teatro que camufla as vidas privadas que a profissão esconde atrás do Drama. Sobre um tapete de rebuçados revelam-se as amarguras da condição da Mulher, da Mulher actriz, da Mulher que envelhece, da Mulher que quer (ou não) ter filhos, da Mulher (des)valorizada, e enumeram-se os homicídios por violência doméstica que têm ocorrido com uma monstruosa frequência.
Sendo um espectáculo básico, com uma fórmula gasta (o cruzamento das próprias biografias com a ficção), As três sozinhas é sustentado pelo virtuosismo das actrizes. É um exercício bem temperado, onde o histerismo* dos assuntos explorados tanto desata gargalhadas como provoca questionamentos sérios, tendo como calcanhar de Aquiles aquilo que, paradoxalmente, é o que faz deste espectáculo ter a natureza certa e a dose correcta de aparente sinceridade: a simplicidade, coloquialidade, o ritmo e clareza de discurso de As Três Sozinhas explora apenas q.b as problemáticas que aponta. Tal facto torna-se mais evidente por via de uma estrutura dramatúrgica um pouco flácida, que se revela em demasiada, dando ao espectador a sensação de estar perante um conjunto de sketches, o que corta a fluidez do espectáculo.
As ideias exploradas a cada momento não são muito sofisticadas, mas são fortes e cruas. Talvez seja esta superficialidade o espelho mais que perfeito da nossa sociedade…? Talvez seja necessário olhar mais profundamente para o discurso histérico*…?
* Na progressão da leitura, o entendimento que se faz destes adjectivos é aquele definido pelo próprio texto, ou seja, “ser histérico/a” é um modo de ser que é genuinamente feminino, um modo de entender e de se relacionar com o mundo que é característico da Mulher, é colocar-se perante o mundo compreendê-lo e falar sobre ele sob a perspectiva da Mulher, numa aplicação que tem a pretensão de anular a carga negativa freudiana dos termos.
As três Sozinhas. Direção artística e interpretação: Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas, Sílvia Filipe; Figurinos: José António Tenente; Música Original: Teresa Gentil; Desenho de luz: Daniel Worm d’ Assumpção; Sonoplastia: Teresa Gentil; Pesquisa e Dramaturgia: Alex Cassal e Judite Canha Fernandes; Apoio Coreográfico: Miguel Pereira; Produção Executiva: Daniela Ribeiro; Residência de Criação: Espaço do Tempo, Montemor-o-Novo; Coprodução: TNDM II, Teatro Meia Volta e depois à esquerda quando eu disser.
Foto de Humberto Mouco
(Este texto está também publicado em www.ocalcanhardeaquiles.wordpress.com )