A escritora britânica Doris Lessing ganhou o prémio nobel da literatura, em 2007, aos 88 anos, mas os anos de esquecimento da academia sueca nunca a parecem ter preocupado. Como diria sarcasticamente mais tarde: «Como não podiam dá-lo a alguém que já tivesse morrido, devem ter achado que era melhor darem-mo logo, antes que eu batesse a bota».
Doris Lessing já tinha, aliás, recusado vários prémios, tal como o de “dama do Império Britânico”, invocando que não existia qualquer império britânico. É de recordar o registo das imagens do dia em que soube a notícia do veredito da academia sueca. Nesse dia, encontraram uma Doris Lessing empenhada em pagar o táxi à chegada à sua casa londrina qual avozinha desgrenhada. A sua sobriedade provocatória, tal o desinteresse no prémio, fazem crer que dedicação e a lealdade ao trabalho da palavra não foram movidas pelos escaparates da fama. Poucos livros como “O quinto filho”, da sua autoria, me marcaram tanto. Mais que a escrita escorreita, limpa, que nos vasculha as emoções sem enveredar pela linguagem gongórica, sem devaneios pedantes, sem parecer fuçar artifícios para nos prender a atenção e sem sequer apimentar o enredo para ganhar o leitor – qual Ferrante – dá-nos a verdade, dolorosa, crua, demolidora. Ou assim nos faz acreditar. Este livro trata-se disso mesmo. De dissecar o padrão de normalidade burguesa até espremer o pus por baixo da podridão de uma alegria definida a régua e esquadro. Uma família feliz, ou assim parece, casa grande, cheia de filhos bonitos, inteligentes, educados, repleta de amigos, onde o dinheiro não é problema e a vida passa sem as angústias de condições materiais adversas, sem incertezas. Tudo acontece com a leveza da família perfeita, segundo a sociedade dita, sim, e, claro, novamente, na monotonia branda do que parece, mas se calhar não é, até ao quinto filho. O quinto filho é esse ponto de viragem, a fuga à norma, ao padrão. Uma gravidez violenta, uma criança diferente, que não se adapta, que não encaixa, que não reage como esperado e a casa de cristal estilhaça. As pessoas afastam-se, a solidão, a desestruturação e o desespero tomam lugar. Desenganem-se os que leem neste resumo – que mais não é do que um olhar possível sobre a obra – a ideia de que é feito um retrato social descomprometido. Doris Lessing, ex-militante do partido comunista inglês, empenhada na denúncia das injustiças raciais e na sua oposição ao colonialismo britânico que lhe deixou marcas tão profundas é uma escritora mordaz que não pactua com a hipocrisia e transporta a sua ácida crítica social para os seus livros.
Não é que subjugue a sua obras a espartilhos ideológicos, mas encerra nos seus livros uma perspetiva ideológica emancipatória e de vanguarda.
Quem é esta criança? Uma pessoa? Um sentimento? Um símbolo da guerra? A leitura que escolhamos fazer da obra pode apontar vários caminhos. Eis a escolha de um dos muitos possíveis. Afinal uma obra literária pode ser apenas um pretexto.
O retrato de Ben poderia ser a de uma criança com deficiência à luz de cânones que hoje recusamos. Quando o ponderam levar para uma instituição descrita como de aberrações, um lugar de horrores, fazendo apelo à imagem demoníaca das pessoas com deficiência que perdurou durante largos períodos da história, talvez seja possível encaixá-lo na gaveta de uma pessoa com deficiência. Esta família podia ser a sociedade, a tal que não integra, que não inclui a diferença. E, sim, a família é também¸ tantas vezes¸ refém de uma sociedade que não dá respostas nem alternativas.
E fora da ficção? Que trajeto foi sendo feito na inclusão das pessoas com deficiência? Teoricamente¸ tem-se feito um trajeto de transição do modelo médico da pessoa com deficiência, centrado na incapacidade e nas limitações do indivíduo, para um modelo social que aponta a patologia da sociedade como responsável pela inadaptação das pessoas na sua diferença. Hoje¸ defende-se um modelo designado de biopsicossocial, que combina os dois modelos anteriores, introduzindo dimensões psicológicas e associando uma perspetiva de reconhecimento de direitos humanos. Podia ser também esse o caminho a seguir para uma leitura redentora desta obra prima que Lessing nos deixou. E esta obra, sim, é só um pretexto. Foi também no Reino Unido, país no qual a escritora se naturalizou, apesar das suas raízes africanas, que se iniciaram movimentos sociais relevantes de emancipação da pessoa com deficiência nos anos 60, país muito marcado pela tendência de institucionalização e isolamento social das pessoas com deficiência. Aos curiosos fica o repto para a leitura da obra e para a do seu final. Certo é que uma sociedade inclusiva, que pugne pela igualdade e não discriminação e pela garantia de direitos, coloca-nos perante desafios exigentes. A inclusão pressupõe um projeto de sociedade assente na escuta ativa e na permanente interação com todos os seus sujeitos tornando-os parte da solução e não do problema: «Nada sobre nós sem nós». E, de facto, o silenciamento das pessoas com deficiência é ainda mais agudo nestes tempos de crise. Tantas vezes se fala de discriminação e é esquecido um grupo de pessoas vítimas de violência, abusos, de eugenismo e de violações de direitos humanos grosseiras e arrepiantes. É sempre difícil mergulhar nas trevas alheias, mas que sociedade podemos construir sem contribuirmos para tirar da sombra os quintos filhos que aparecerão inevitavelmente nos nossos dias? Mas essa resposta tem de ser pública. Só um Estado Social robusto pode dar essa resposta de forma consequente e garantir a verdadeira implementação de um modelo de vida independente às pessoas com deficiência, com garantia de acesso ao trabalho em condições de igualdade, de adaptação razoável do posto de trabalho, de eliminação de barreiras, acessibilidades e mobilidade, acesso aos transportes públicos e a apoios sociais adequados que não as encerrem na trilogia fatídica da vulnerabilidade: desigualdade, pobreza e exclusão social . Certamente que não são modelos que encaram as pessoas com deficiência como um custo económico que permitirão a emancipação das pessoas com deficiência. Passaram mais de dez anos desde a entrada em vigor da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada por Portugal em 2009, e um marco incontornável para a tutela dos direitos das pessoas com deficiência, mas a resposta às pessoas com deficiência vai surgindo a um ritmo lento e com muitos passos atrás no contexto da pandemia. As notícias recentes dão sinais alarmantes.
Não sabemos quem era o quinto filho, o Ben de Doris Lessing, nem o que representa ou se simboliza a guerra que tanto atormentou a autora, mas sabemos que existem alternativas para romper desigualdades e mitigar a vulnerabilidade, que se assumiu como estrutural, de pessoas que se tornam diferentes na interação com um meio que não as vê ou não as torna iguais, sobretudo num sistema predador como é o sistema capitalista.
‘Ben’ pode encontrar o seu lugar ou podemos construir uma sociedade em que ‘Ben’ não seja apenas esse encontro tumultuado com a realidade. Isso é certo. Resta saber se continuaremos a adiar um lugar para os Ben que todos somos ou podemos ser.
«After a day with Ben I feel as if nothing exists but him. As if nothing has ever existed. I suddenly realize than I haven’ t remender the others for hours».
Dorir Lessing¸ «O quinto filho»
Foto: Jonathan Player