Os Palmilha Dentada são uma companhia da cidade do Porto criada em 2001 por Ricardo Alves, Ivo Bastos e Rodrigo Santos. Este emblemático grupo de teatro é acarinhado pelos portuenses e não faltam motivos para isso. Desde os tempos em que se apresentavam no bar Tertúlia Castelense, na Maia, que dão garantias de bons momentos ao seu público, um público que hoje é uma legião de fiéis seguidores. Sair para um espetáculo dos Palmilha é como reencontrar um velho amigo que nos conforta mesmo naqueles dias de cão. É como rever aquele tipo que tem sempre a tirada certeira para nos arrancar uma gargalhada e o faz com a mesma facilidade com que vai abrindo minis. Sim, está garantida a dose certa de humor, inteligência e crítica social.
O espetáculo 12 efeitos de luz, interpretado por Ivo Bastos e com voz off de Rui Almeida, é o resultado de mais uma das magníficas encenações de Ricardo Alves e conta com músicas originais dos Ornatos. Ou quase, vá. Os originais são de Manel Cruz, Elísio Donas, Kinorm, Peixe e Nuno Prata.
Em entrevista, Ivo Bastos explica que o espetáculo foi construído em cima de 12 efeitos de luz e que o texto nem sempre é o centro dos espetáculos dos Palmilha, mas apenas o pretexto. Chegados ao pequeno auditório do Rivoli encontramos um cenário que mais parece um baú de memórias: uma bicicleta, um sinal de trânsito (esse clássico de rebeldia de banda de garagem dos anos 80), uma estante metálica com roupas de adulto e de bebé, uma pequena cadeira, um regador, uma máquina de escrever, um busto feminino, caixas, uma garagem vintage… No final, o caos acaba sempre por fazer algum sentido…
A personagem principal surge numa penumbra com um discurso nostálgico sobre a amizade que culmina com uma pausa sentida do ator «um tédio!». Pois. Está lançado o repto. O público fica com a certeza que foi feita a transição para um tempo de comédia. Pode-se discutir o papel do amigo nos filmes americanos e recordar Chuck Norris e Van Damme. Clássicos de porrada que nenhum macho alfa pode perder. Pode-se concluir que se tivermos de agredir alguém é mais útil que seja a um amigo. Ou pode-se falar do sonho de menino em ser assistente de enfermagem e falar do movimento operário em defesa do direito a ser escravo para orgulho das gerações vindouras. Isto enquanto o amigo da voz off disserta sobre pombos com notável enlevo e fala da sua parca reforma de mais de 3000 euros à qual soma a da falecida. Que isto no Inverno faz muito frio. Não é fácil. Um professor universitário que afinal não é de biologia, nem de ciências, mas de relações internacionais. O mesmo que depois resolve falar dos esquilos e compará-los com as pombas aplicando essa imagem às mulheres: «A minha mulher é uma pombinha, mas a Laura é uma esquila». E é preciso cuidado com as esquilas e aquelas caudas vistosas. Enquanto isso a personagem interpretada por Ivo Bastos recorda aquele dia derradeiro em que Laura decidiu «dar um tempo» na relação: «Um tempo?», «Precisas de ir à casa de banho? Eu espero», «Um tempo?, «Está bom tempo hoje». «Podias dizer que fodo mal, que estás de olho noutro gajo, mas um tempo?». E recorda aquela situação em que a namorada lhe disse que não podia ter uma relação à distância, que ia mudar de cidade. Tinha-se mudado para Vila Nova de Gaia.
Até pode parecer que isto não faz sentido nenhum, mas tudo faz sentido no exorcismo desse caos que são as memórias. Reencontrar os Palmilha é mesmo como reencontrar um velho amigo. E, sim, percebemos que está mais amadurecido, que até já tem umas brancas no cabelo, que está porventura mais cansado e amargurado, com mais entulho no sótão das recordações onde guarda mais desilusões e experiências, mas continua tão genial como antes e a arrancar-nos as mesmas gargalhadas. E, claro, esse reencontro é sempre um momento imperdível. Façam o favor de não o deixar pendurado. Está em cena até dia 23 de janeiro.
12 Efeitos de Luz, de Palmilha Dentada
Teatro Rivoli, 12-23 Janeiro 2022
Desenho de luz, direção plástica, texto, encenação Ricardo Alves
Interpretação Ivo Bastos
Voz off Rui Oliveira
Músicas originais de Manel Cruz, Elísio Donas, Kinorm, Peixe, Nuno Prata
Fotografia Júlio Eme
Produção Helena Fortuna
Coprodução Teatro Municipal do Porto
Foto: José Caldeira